A história que nos contam

África foi destruída, apagada, dizimada e silenciada desde a escravidão de seus povos. Porque um povo sem cultura é um povo sem identidade, portanto, não é um povo. Os escravos africanos foram tratados como animais. Os escravos africanos obedeciam aos seus senhores, pois assim funcionava o sistema de dominação. 

Quando resolvem contar a nossa história ou fazer pesquisas sobre ela, normalmente sempre falham, e já é esperado essa falha. Não temos professores negros falando sobre a história da África nas escolas, para mostrar aos alunos que definitivamente a África não é restringida ao limite material e histórico de servidão e apagamento. É muito mais enfatizado sobre como a nossa história não existiu do que sobre como tiveram tantos ancestrais africanos que continuaram resistindo a escravidão de diversas formas, mesmo que fosse às escondidas dos senhores. A nossa história não foi somente baseada em servidão e apagamento porque temos como principal marco e símbolo a luta de resistência dos quilombolas. O Brasil contabilizou 300 (trezentos) quilombos no período escravocrata. Trezentos quilombos variando entre 200 casas cada vilarejo, formava uma cidade de 9.000 a 15.000 habitantes. Os negros escravizados no Brasil possuem uma história que resgata toda a sua origem trazida dos países da África. Nós não temos exclusivamente o apagamento como forma de lembrança. A nossa história também é sobre a luta pelo reconhecimento da nossa humanidade. A nossa história também foi e continua sendo sobre encontrar diversos meios de resistência para não deixar morrer o que os brancos tentaram matar: e seguem o fazendo quando reduzem a nossa existência histórica ao apagamento.

Quando professores de História e Sociologia reduzem a nossa existência histórica ao apagamento total e sumário da identidade dos povos escravizados (povos escravizados jamais serão escravos), estamos absorvendo, mesmo que por outra óptica menos europeia, sobretudo mais idiossincrática, a noção de que o negro não existe porque assim o fizeram historicamente ao colonizar e escravizar o seu povo. O negro não existe porque foi dizimado, apagado, e os casos de resistência foram mínimos. Nessa perspectiva que continua soando racista e bastante pretensiosa, me proponho a escrever que o nosso povo foi escravizado, tendo suas terras, seus bens e suas cultura social e religiosa açoitada, saqueada, esmagada para o benefício socio-econômico da sociedade branca; que propositalmente deu ênfase nas disputas tribais de povos africanos, gerando guerra e venda de escravos. 

Leila Hernandez foi citada em sala de aula em uma escola pública:


  

"Pela ocultação da complexidade e da dinâmica cultural próprias [...], considera-se que a África não tem povo, não tem nação, nem Estado, não tem passado, logo, não tem história". (Leila Leite Hernandez) 

Em sala de aula é muito comum que professores sejam vistos como detentores da certeza absoluta, como se essa consistisse na formação meramente acadêmica, e é, por assim dizer, muito comum que os professores - inclusive aqueles mais alternativos ou "diferentes" - apresentem suas ideias como certas e definitivas, impossibilitando muitas vezes o diálogo entre alunos e a construção de debates acerca dos assuntos e pautas abordadas em sala de aula. Quando temos nas escolas a ideia tradicional sobre a África enquanto um lugar empobrecido, decadente, miserável e para sempre com o legado mais soberano da escravização, esquecemos de que há outras visões travestidas de menos tradicional e mais "alternativas", como por exemplo a que Leila Leite H. aborda em seu livro (A África na Sala de Aula), expondo que a história da África deve ser contada de outra forma. Essa forma de pensar é exatamente a forma que eu pretendo questionar.

Quando me dizem que a África não existe porque não pôde manter as suas culturas, valores e nem mesmo a sua nação, fico incomodada. Verdadeiramente aborrecida, pois quem mais resolve falar sobre isto não é a comunidade do movimento negro, mas sim professores (majoritariamente brancos), formados em Ciências Humanas. A antiga ideia tradicional de África continua sendo nociva na mesma proporção que a nova ideia concebe o povo africano como um povo sem história. Realmente, se formos pensar bem em como a comunidade negra existe em estado de diáspora, com certeza a nossa ideia de valores e de cultura se perdeu numericamente. Numericamente quer dizer que em números abundantes as particularidades tribais acabaram sendo reduzidas a um número, às vezes, ínfimo, e aos poucos a assimilação a condição de povo escravizado em territórios desconhecidos acabou tendo que se adaptar ao ambiente e a cultura predominante.


Aqui no Brasil houveram 300 quilombos contabilizados. Um deles possuía e variava o número de habitantes e habitação, como por exemplo, extensos vilarejos com 200 moradas. Esse que faço citação foi o segundo maior do Brasil, sendo localizado no Rio de Janeiro (Quilombo do Carucango). Quando falam sobre a nossa história dificilmente lembram que ela coexistiu com resiliência ao sistema escravocrata do Brasil. Quando falamos da nossa história e de seu apagamento passível ao total aniquilamento das resistências históricas do negro, esquecemos que aqui no Brasil o moçambicano Carucango passou:

Os escravos fundaram o denominado Quilombo do Carucango nas montanhas da Serra do Deitado. O quilombo foi destruído e Carucango foi linchado ao ser capturado. O seu corpo foi retalhado, seus membros e tronco exibido nas fazendas e na Freguesia das Neves. A cabeça foi espetada numa lança e colocada na estrada de Farumbongo, a maior movimento da região, onde permaneceu até decompor-se por completo.


 O Quilombo do Carucango é reconhecido por ter construído uma grande estrutura de moradia e plantio de alimentos que serviam a toda comunidade quilombola. Quando os militares destruíram o Quilombo ficaram abismados com o grande espaço de habitação que havia sido criado para uso coletivo, e com os abundantes plantio nas redondezas. Considerando que houveram trezentos quilombos espalhados por todo o território brasileiro, é desonesto, bem como falacioso, considerar que a África e o povo africano em diáspora não tem história e não tem cultura. Quando acusam que tudo se perdeu ou foi submetido a inexistência, estão tornando invisível as diversas realidades resilientes de africanos escravizados, de quilombos e senzalas que, apesar de ser um lugar humanamente hostil, também servia de ambiente para que os negros escravizados pudessem minimamente praticar algumas de suas individualidades culturais. 

A História da África é extremamente vasta, sendo o território africano o mais antigo e engenhoso conhecido. Egípcios criando  os processos de mumificação, tendo sua prática religiosa e valores culturais atribuídos ao sistema de hierarquias; assim como também teve as grandes construções das pirâmides. Na própria África a existência de tribos nativas é imensa, variando de local para local, tanto antes quanto depois da escravidão imposta pelos portugueses. Não viemos e não somos um povo sem cultura, sem história. Apenas ouvimos todas as versões dela reduzindo a nossa existência passada a todas as mazelas da escravidão, ressaltando pouquíssimos fatos históricos sobre reis e rainhas da África, sobre grandes construções científicas, ecológicas e culturais que ali se residiu por muitos anos antes da escravidão. Quando me dizem que a história do povo africano, povo o qual pertenço, não existe, é porque não sabem o que falam, ou realmente não se importam em oportunizar professores negros, com conhecimento e estudo sobre a África, possam ministrar aulas a respeito. África tem uma história, e possui várias histórias, antes e depois do período de escravidão. Se você acha que estou enfeitando as coisas por motivos individuais, busque o conhecimento do povo africano antes da escravidão. Os africanos escravizados (e não escravos) foram grandes lutadores de toda a nossa história. E não estou romantizando, dizendo que para os negros tudo foi possível, bastasse lutar. Não superávamos o armamento do homem branco, assim como não superávamos todas as artimanhas sociais por eles engendradas, e não poderíamos, porque ninguém vive de forma digna sendo tratado como um animal odioso. Mas morremos aos montes para proteger a nossa liberdade e não somente a liberdade realmente almejada, mas em defesa da humanidade. O negro nunca encarou a sua existência como algo não-humano, pois o sentimento de rejeição a escravidão sempre foi latente e ouso dizer que estava dentro do coração de cada um, até mesmo dentro do coração daqueles que defendiam os senhores a todo custo. Nem todos conseguiam compreender que nada teria de benefício em uma relação de escravo com o senhor. Essa relação era exclusivamente de exploração física e também mental. Apesar de nem todos verem a imparcialidade e desigualdade nas relações com os senhores (negros escravizados que achavam que poderiam ter mais regalias ou preferência caso obedecesse cegamente ao senhor), acredito que intimamente eles estariam rejeitando a escravidão e os escravocratas, porque a lei servia para o branco, jamais para o negro. Tudo acontecia a base de violência, e foi exatamente pela quantidade incalculável e gritante de negros revoltados e fugitivos, que o terrorismo dentro das fazendas e cidades passou a existir e coexistir, confrontando a psicologia e a sobrevivência da história individual de cada negro. A violência resultava em medo, e o medo era, sobretudo, a ferramenta mais utilizada pelos senhores de engenho: degolar cabeças, decepar corpos pretos e dependurá-los nas fazendas e cidades para servir de exemplo, era, sem dúvida nenhuma, uma grande face do terrorismo branco para os negros escravizados. Ninguém queria ser o próximo a morrer e o próximo a ter o seu corpo distribuído em vários pedaços por cidades e fazendas. Era difícil sobreviver, mas a sobrevivência salvou muitas coisas, e essas coisas precisam ser muito mais relembradas do que sutilmente abordadas em "casos especiais de resistência". 

A resistência não deveria ser tida como uma observação, ou como algo adjacente, algo complementar dentro do assunto África em período de escravização de pessoas e de negros escravizados em diáspora. A resistência é parte substancial da vida das pessoas obrigadas a esse tipo de exploração. A resistência sempre foi o motor interno que rebelava diversos corpos e que resultava na perspectiva do amanhã. A resistência não foi somente Zumbi dos Palmares, bem como a guerreira Dandara, mas foi também todos os trezentos (300) quilombos contabilizados no Brasil em período de escravidão; foi todas as mulheres que negaram o seu corpo para uso sexual de senhores de engenho e também dos negros que tentassem algo. A História não foi apagada e nem dizimada, pois até mesmo nos mais recônditos lugares de uma fazenda de engenho havia a realização de práticas religiosas africanas, bem como de suas crenças internas. Não se pode reduzir a nossa história na óptica tradicional de fome e miséria, e na segunda visão (também) colonial e tradicional de que nossa história foi apagada, dizimada, aniquilada por completo e absoluto, que os portugueses escravistas conseguiram fazer isso em completude, e, portanto, a África é um povo sem história. E ouso acusar como crime e desonestidade de todo o professor (branco) que alega isso em ambiente escolar, onde a assimilação de ideias/informações acontecem religiosamente sem contestação ou reflexão. Não estou aqui para ouvir que sou descendente de um povo sem história, que, nessa lógica, sequer tenho um povo. Não estou aqui para ouvir que não existo e que minhas ancestrais, mulheres escravizadas (tataravó, tataravô, etc), viveram sem a sua própria e individual história. Não importa o que digam. A História da Negra e do Negro é vasta e não foi apagada por absoluto, se assim desejou o colonizador. Para a infelicidade de alguns... Há biólogos, antropólogos, historiadores e cientistas negros mostrando e evidenciando materialmente todas as historicidades no vasto continente africano, e toda a sua história anterior e posterior à escravidão dos portugueses. 

A nossa História deve ser contada por pessoas que nos entendam como seres humanos que existem. Queira a pessoa branca se achar capaz de anular a nossa existência de outras formas "historicamente" legítimas ao seu ponto de vista (mostrando teoricamente que o europeu aniquilou o povo africano), queira não, não cabe a ela decidir os rumos da nossa história, não mais. Hoje podemos sim reescrever um novo legado sobre a nossa contínua existência de luta diária contra o racismo institucional que ainda permeia. Temos uma história que vai muito além da escravidão. Quem é preta sabe que resistir é lei, e se assim é para nós, assim também foi para nossas ancestrais. A nossa história deve ser contada por pessoas que estejam aptas a nos trazer reflexões sobre a múltipla quantidade de conhecimentos e histórias que a África individualmente construiu antes da escravidão; e se há alguém que deva propor o debate de como os negros vieram a se sentir depois da escravidão socialmente falando, esse alguém deve ser negro. A conquista da nossa identidade começa na associação. 

Eu não associo sensatez e honestidade a um homem branco dissertando sobre sociedade e história humana. Da mesma forma que rejeito toda e qualquer informação biológica/falocentrada sobre eu ser mulher e ser negra. A educação é uma construção que se dá pela base, pelas camadas que vivenciam a materialidade desastrosa dos sistemas de opressão. Mulheres pretas merecem estar na escola ministrando aulas sobre África e sobre Mulher, porque é por elas que tenho afeto considerável e empático, é por elas que me sinto motivada em escrever conteúdos a partir de uma visão enegrecida. Se não fosse pelas pretas mulheres - mulheres pretas em constante situação de abandono, negligência, solidão, descaso e violência, eu não estaria aqui. Somos mulheres historicamente sobreviventes, e da mesma forma que o falocentrismo branco ousou apagar todas as existências não-patriarcais da mulher, desrespeitando e anulando seu reconhecimento humano, parto do princípio de que não obedeço a ensinamento de homem nenhum. Quero ouvir as mulheres pretas. A nossa história precisa ser reescrita por nós. Vamos conseguir desmantelar a casa grande quando destruirmos toda a assimilação da existência histórica do sujeito negro a visão colonial e pós-moderna do sujeito branco.









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