O Patriarcado na Composição das Emoções

Já foi trazido ao debate feminista sobre a construção social da mulher e sobre quais os problemas e dificuldades a qual nós enfrentamos, por sermos submetidas a constantes violências internas e externas que a nós são imbuídas. Em geral, eu sempre digo que o único sentido verdadeiramente radical da vida de uma mulher consciente é a ressignificação de toda a sua concepção acerca das coisas: porque absolutamente tudo ao nosso entorno diz respeito ao patriarcado. Até quando nos olhamos no espelho e logo pensamos (vai dizer?), "será que estou bonita assim?", "será que assim é mais aceitável?". Vivemos rodeadas por homens falando sobre como historicamente a nossa existência nunca existiu e sobre como somos tão "sensíveis, afetuosas e reprodutoras", exatamente como uma máquina de uso coletivo (para o coletivo dos homens) e de uso reprodutivo e servil (para uso coletivo dos homens explorarem nossos corpos e a servidão enquanto estrutura para que eles seguissem oprimindo mulheres e obrigando-as a servi-los). E quando pensamos sobre feminismo e o movimento de mulheres logo achamos que a rejeição do patriarcado e do falocentrismo é algo diretamente e amplamente transformador. E para ser mais exata, é exatamente isto, a negação do patriarcado e das relações falocentradas é a abertura de portas necessária à consciência e liberdade coletiva e individual da mulher. Mas isto não é tudo. A rejeição por si própria evidencia a necessidade de jogar tudo que aprendemos fora. Na lata do lixo. A rejeição pelo patriarcado é sobre transformar-se em uma nova mulher, a mulher cujo semblante principal é a da Transformação e Insurgência, sendo esta a única capaz de começar a perceber a sua solidão horrenda no sistema falocentrado de relações, e ela, somente ela, em conjunto com outras mulheres (e irmãs) poderá descobrir e recriar novos meios de conceber as emoções e os sentimentos. A nova mulher é aquela que vem nos mostrar que somos tudo, menos aquilo que o patriarcado histórico e milenar vem nos fazendo acreditar. E é aí que a dificuldade cresce conforme o tempo: como desenraizar as nossas percepções e emoções do patriarcado? 

A súmula dessa dúvida não é tão simples. A nós exige um constante trabalho de percepção própria. Somos capazes disso. Somos capazes de avaliar (pelo tempo que for) as nossas próprias emoções. Vamos falar sobre elas, vamos compartilhar para as nossas amigas, namoradas, mães e irmãs a nossa aflição, o nosso descontentamento em se sentir ainda presa aos grilhões do patriarcado, e vamos, sobretudo, ver ressurgir individual e coletivamente o nascimento de uma nova mulher dentro de nós. Precisamos ressignificar as nossas vidas através das palavras, das ações, das emoções e das relações. Através de tudo aquilo que pudermos, de fato, fazer. Precisamos nos levantar e reconhecer que onde quer que estejamos, a única certeza social é a de que o homem tudo pode, inclusive nos apagar. E quando falo nos apagar, é por todas as partes possíveis ao ser: o emocional, o psicológico, o físico, o cultural e o social. Estudamos a história e a história é tão masculina quanto qualquer professor que esteja nos "ensinando" sobre ela. Onde é que estavam as mulheres nessa História? Precisaria ser todas um milagre da época para se destacar em alguma área do conhecimento? Através da transmissão contínua das informações a respeito da nossa existência social é que somos engaioladas e apagadas. Se não temos conhecimento sobre a vida de nossas antepassadas, que não fosse retratada (até por nós mesmas) através da óptica da servidão e do esquecimento, como poderemos pensar sobre aquilo que sentimos? Como é que nossas personalidades seriam, de fato, brotadas de uma parte subjetiva se tudo que diz respeito a nossa formação social é vista e escrita através de homens? Mesmo quando mulheres reescrevem alguma coisa na História, elas estariam escrevendo subjetivamente sobre si e sobre sua percepção coletiva ou através da releitura da sociedade falocentrada, regida por homens em todas as suas áreas? Quando mulheres escrevem sobre "amor", mais cunhado pelo gênero literário como romantismo, estariam essas mulheres escrevendo sua verdadeira concepção de amor ou a ideia falocentrada de amor? Todas as vezes que ousamos sair dessa gaiola e dizer que não há chave que seja capaz de nos trancar em tal lugar inóspito, somos apedrejadas. As nossas relações e emoções são adoecidas porque são sentidas pela visão do macho, são psicologicamente tratadas e redefinidas pela visão do falo. O patriarcado é sinônimo, senão em outra linguagem de opressão, da violência. Se os nossos sentimentos se constituem pelo princípio básico da ideia de violência, então o amor, o afeto, a amizade, o carinho e as expectativas estão todos sujeitos ao escárnio, ao adoecimento individual do psicológico das mulheres. É difícil esgueirar-se desse tipo de estrutura, mas é muito mais possível a insurreição das mulheres através de nossos próprios corpos e vivências coletivas. 

Já pensou nos sentimentos? O que são eles? São coisas muito complexas, demasiadamente complexas, subjetivas e, muitas vezes, se materializam em atitudes distintas. Partindo desse pressuposto, o sentimento geral das mulheres é incorporado e configurado numa verossimilhança latente. Muitos sentimentos negativos como o amor e o ódio foram construídos dentro de relações heterossexuais e por percepções através deste. E dentro dessas relações a desigualdade é sempre imparcial: porque a mulher é, na natureza falocentrada, um  sujeito-objeto. Freud viu as mulheres como objeto. Freud teorizou aspectos psicológicos na visão dele sobre o comportamento das crianças designadas macho e fêmea. Freud falou sobre crianças que quando designadas fêmeas acabam sentindo inveja do pênis e, conforme crescem, desencadeiam rivalidade com a mãe por não tê-la dado um pênis. E quando pensamos em nossas emoções e sentimentos, infelizmente não estamos pensando com o nosso próprio olhar emotivo, olhar sensorial, olhar perceptivo, olhar profundo e individual. Estamos pensando com a ênfase patriarcal de como nossos sentimentos de fêmea são "por natureza". Tudo que diz respeito a nossa individualidade subjetiva o patriarcado estará lá escrevendo livros e teorias, para seguir enquadrando as nossas vidas em redemoinhos paranóides de significado. E para continuar o seu legado sobre aquilo que define o que sentimos e as nossas emoções (causa e efeito, origem, meio e fim), a percepção patriarcal continua se reproduzindo através da literatura e da medicina desempenhada por mulheres. Quando é que a nós foi dada a oportunidade de escrever sobre o que sentimos? Sem adjacentes patriarcais? Como foi a nossa construção existencial? O nosso ser foi construído através de livres perspectivas e escolhas ou o nosso ser foi subentendido e designado, forçosamente, a um destino infeliz e coletivo? Por que fomos ensinadas a amar o homem e não a mulher? Porque o "amor" pelo macho é natural, enquanto o amor pela fêmea é uma dissociação, desvio, orientação? Por que o amor pela fêmea não é o "padrão"? Os nossos sentimentos são constituídos pela ideia do homem. Nós sentimos as coisas exatamente como deveríamos, não como naturalmente queremos. Não pensamos, com profundidade, sobre questionar nossas emoções e insurgir dentro de nós mesmas em busca de ressignificar o vazio falocentrado das relações que estabelecemos individual e coletivamente. 

Temos que pensar na composição de nossas emoções e sentimentos. Se fôssemos nos despir de toda a nossa personalidade e nossos sentimentos, o que sobraria? Quem somos, de fato? O que sentimos por nós mesmas? O que sentimos por outras mulheres? E, o que sentimos pelos homens? Temos que pensar sobre aquilo que consideramos belo, sobre nosso conceito de beleza e aceitação, sobre as nossas imparcialidades com nós mesmas, sobre a nossa dificuldade em se desprender de determinados adjacentes patriarcais, sobre o nosso psicológico, sobre os nossos problemas internos em não conseguir respeitar as nossas vontades reprimidas e ignoradas. Se não falarmos sobre isto, estaremos matando a oportunidade de superar medos e dificuldades coletivamente. Se não falarmos sobre nossas noções de amor e sentimentos diversos, estaremos matando a oportunidade de ressignificar os nossos sentimentos a partir da nossa experiência individual/coletiva de amor e sentimentos diversos. Não precisamos estar cem por cento certas de que estamos contra o sistema do falo. Isto sabemos, e assim continuaremos. Precisamos, na urgência cabível dentro de cada limitação, falar sobre nossas dificuldades em desmantelar estruturas internas já formalizadas em nós. Como iremos avançar na luta coletiva se ainda estamos ofuscando as nossas próprias dificuldades em dar luz a esta nova mulher Insurgente e Criativa? Não estamos preenchendo um formulário burocrático sobre quem é mais feminista e quem é menos. Estamos construindo um movimento de libertação das mulheres, e por este motivo precisamos trabalhar o nosso emocional e o nosso psicológico, sendo estes dois um dos mais prejudicados/afetados na sociedade falocentrada. Se não escrevermos virtualmente e falarmos pessoalmente sobre nossas aflições, estaremos fadadas a nunca sair do lugar que estamos verdadeiramente. 

Não precisamos ter medo de falar. Precisamos ter a ousadia de nos desafiar a destruir os grilhões do falo e a ressignificar a vida junto de outras mulheres. Para isso, saber que estamos aqui e que precisamos desabafar e transformar o desabafo em mudança material/social, se faz necessário para assim podermos avançar na luta de nossa própria e real libertação. Essa libertação só será possível quando nascermos novamente através de nossas próprias raízes, desmantelando os adjacentes patriarcais, ressurgindo em nós mesmas e dando luz à uma nova personalidade que se forma através daquilo que sentimos e de nossas experiências individuais e coletivas. 





 "Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas."

Comentários

  1. Gente parabéns, por textos e pesquisas assim!!! Grata por nos acorde desse sono de belas adormecidas... esse sim eh um beijo de mor verdadeiro!!!

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