Ressignificando a vida artravés das palavras


 RESSIGNIFICANDO A VIDA ATRAVÉS DAS PALAVRAS

O silêncio ecoa. É névoa, chuva, tempestade, ventania. O arrepio cobre cada parte do corpo e se torna quase insuportável respirar. Olho para todos os lados e penso: "estou perdida!", e então vejo outra mulher que também está quase sem respirar, mas que faz de tudo para alcançar a sobrevivência. Quando nos encontramos ela suspira aliviada: "achei que estava perdida!". Penso novamente e me sinto um pouco mais tranquila por saber que definitivamente não estou sozinha.
Obra por Faith Riggold
A falta de ar para as mulheres é mais comum do que se imagina. Sejam elas mães, divorciadas, velhas, pobres, negras. Essas mulheres tem tanto em comum. Eu fui criada por mulheres exatamente assim: mães, divorciadas, pobres e negras. Em algum momento da minha vida eu até achava que ser menino era legal. Eles brincavam com carros e helicópteros e eu me entediava facilmente na vida fútil de casinha. Pelo fato da minha mãe ter sido divorciada do meu pai desde antes de eu completar um ano de idade, sempre ouvi que meu pai era irresponsável, ausente, frívolo e malvado. Ela estava certa. O meu primeiro contato de força e heroísmo sempre foi quando eu via a minha mãe chegar em casa depois de um duro dia de trabalho. Ela me trazia barrinhas de cereais e eu admirava tanto a beleza dela, o entusiasmo, o jeito que ela caminhava para ir fazer o dia acontecer lá na rua. Eu era uma garotinha tão pequena e já queria ser igual a minha mãe, pois era isso que eu queria ter como profissão quando crescesse: ser forte e independente. Ela me criava com o próprio sustento e com a ajuda dos meus avós que, sempre muito acolhedores, fizeram parte de nossas vidas por uma trajetória muito cansativa. Eu era pequena. Eu sabia que iria crescer, virar adulta e ter que ser alguém, porque na escola primária diziam assim. Mas eu queria ser como minha mãe: forte e independente. Destemida. Comprava pipoca para mim com a maior certeza em suas palavras educadas. Me cuidava com a maior certeza de que mesmo errando estava se esforçando. Aprendia comigo e com ela mesma. E eu queria ser "fortona" como aquela mulher que muitas vezes também desabava e chorava que nem eu, e numa rápida troca de cadeiras, eu é que dava o carinho, colo, bebida quente e as palavras que acalmam. De repente não éramos unicamente cada coisa em seu lugar, mas várias coisas ao mesmo lugar e ao mesmo tempo. Às vezes quem chorava era eu, desesperada, berrando. Às vezes quem chorava era a minha mãe. E já falaram sobre a solidão da mulher negra e sobre a mulher negra imbatível. A mulher negra não é imbatível: ela sente, ela sofre, ela existe e ela reage a todas as suas dificuldades emocionalmente e psicologicamente como qualquer outra mulher. Ela também está suscetível a sentir-se triste e sozinha, e a perceber-se assim na vida. Esta mulher tem o direito irrevogável de chorar e de sentir, porque ela é um ser humano e nenhum ser humano é de ferro. Minha mãe era forte e era a minha Mulher Maravilha mais elaborada. Mas eu não sentia vergonha, raiva ou decepção quando ela estava triste e chorosa, quando ela não saía do quarto, cortava o cabelo e bebia sozinha na sala até altas horas da madrugada. Sempre fomos, no fundo, eu e ela. E eu sabia de todas as pequenas e minuciosas fraquezas daquela mulher, assim como também sabia de cada força, inteligência e capacidade que ela tinha dentro e fora de si. Ela me permitia chorar só um pouquinho porque tinha medo que eu fosse fraca quando crescer. Eu permitia que ela chorasse um tantão porque ela era sempre a mulher destemida que às vezes cansava de engolir sapos e desatava a chorar. No fim éramos duas e nosso laço redescobria as nossas capacidades de amar e aceitar. O patriarcado se tornou tão pequeno para mim quando eu falei pra mãe com 15 anos que eu gostava de meninas, e se ela aceitaria meninas como minha namorada. O patriarcado ficou muito menor quando ela disse que aceitaria e que aceitaria a minha escolha em ser feliz. 


Apesar da sociedade patriarcal introjetar valores rapidamente antes mesmo de você nascer, a minha criação foi através das mulheres, com pouca ou nenhuma incidência do homem enquanto gestor de casa. Tinha o meu avô, mas ele sempre evitava se meter na minha educação e delegava a tarefa para a minha mãe e a minha vó. Éramos três mulheres que basicamente existiam como pilar e força para um castelo. Ao contrário do que muitos podem pensar, nossa força e nosso pilar era pra sustentar a nós mesmas. Nós éramos o nosso apoio, os nossos braços direito e esquerdo, as pernas, o teto, o âmago, o ódio e o amor. Éramos a fortaleza que desembocava no rio de águas claras e cintilantes. Nem tudo reluzia e nos magoamos muito por besteiras e por coisas que nunca deveriam, de fato, fazer sentido na cabeça da mulher, mas na cabeça do homem com certeza. Nossa relação sempre foi de apoio e sobrevivência, mesmo que tivéssemos que limitar a nossa própria voz, e mesmo que isto doesse demais. E como doía, como era ruim quando toda a imbecilidade falocêntrica era verbalizada pela vó e pela mãe. Elas eram minha referência, meu motivo mais soberano para orgulho e honra. 

Descendente de escravos, era difícil sentir honra e orgulho. Mas hoje o orgulho e a honra são emblemas que acompanharam a trajetória de sobrevivência das mulheres da minha família. E não me limitei ao vê-las para além das estruturas patriarcais. Não subjetivei as suas capacidades. Materializei e reconheci que elas eram mulheres inteligentes, fortes, cheias de conhecimentos e habilidades, e que se em algum momento da vida foram impossibilitada de galgar novos espaços e afazeres, foi por privação da supremacia masculina. Porque mulheres são muito capazes e se deixar, bom, elas vão muito além. Assim como sempre foram, mesmo que em espaços tão pequenos onde não nos permitiram respirar. Redescobri o amor e a admiração pelas mulheres a minha volta: as mães divorciadas, as velhas, as negras e as pobres. Eram elas parte de mim e eu parte delas, e o patriarcado uma introjeção desnecessária que começava a ruir quando o meu amor começava por elas a nascer.
 

As mulheres tiveram e seguem tendo uma esmagadora realidade onde o poder masculino rege suas vidas. Com certeza o coração aperta e os punhos cerram. Não estamos sozinhas porque mesmo que nossas palavras reproduzam o vazio que ecoa nas mentes masculinas, nós percebemos que há um "eu" gritando por nós. Mesmo silenciosamente recusamos a violência do homem pela mulher. Mesmo quando criamos inimizades ou ouvimos de outras mulheres que não somos nada sem um homem, mesmo quando reproduzimos atrocidades em atitudes e verbos: nada faz com que nossas vidas sejam sistematicamente diferenciadas. Porque na visão do Criador da Humanidade, a do homem branco, nós não somos ninguém, mas sim o objeto funcional, útil, reprodutivo. E nada além de um buraco quente. Sei que dói falar sobre isto, mas estamos falando sobre materialidade. Materialidade são coisas que procedem sistematicamente de modo em que não se agrega outros valores subjetivos que não a própria materialidade, que tem muito a ver com a realidade. Não queremos teorias e nem "ismos" para salvar os homens de suas verdadeiras reputações, e nem transformá-los em colegas e camaradas. O tempo que perdemos em tentar manter o patriarcado sistemático é o tempo que poderia ser ganho para tentar ressignificar as nossas vidas. 

 Estamos insurgindo aos poucos e aos montes e em cada parte do mundo criam-se sementes que florescem nos corpos e nas mentes das mulheres Mulher negra, mulher lésbica, mulher. Somos sinônimo de luta, de sobrevivência que afronta e aniquila as tentativas constantes de nos matar da supremacia masculina. Nossas vidas não são qualquer coisa e também não devem ser qualquer coisa. Elas importam. Elas valem. Nós importamos e nós valemos. Valemos pela nossa existência e pela nossa capacidade de existir como seres humanos. Estamos ressignificando a vida através das palavras. Estamos expelindo palavras e sentimentos que não nos pertencem: estamos reconstruindo a nossa noção de História.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Patriarcado na Composição das Emoções

A história que nos contam

O estupro e a raiva