A reconstituição da mãe e da filha

Eu estava pensando na minha mãe. Hoje acordei pensando nela e muito provavelmente vou dormir pensando nela. À minha volta eu vejo muitas mulheres que sofrem nas relações com as suas filhas. É difícil esperar que a maternidade seja assertiva quando ela é imposta, quando ela é introjetada compulsivamente pela heterossexualidade e pelo homem. A maternidade, assim como o estupro, e decorrente do mesmo, é incisiva na estrutura social de dominância. É a arma secundária do patriarcado para manter as mulheres secularmente domesticadas por uma suposta preparação para tornar-se mãe. Ser mulher é tornar-se a mãe fantasiosa bíblica e sagrada: cuidar dos filhos, da casa, do marido, ocupar-se em ver novelas e telejornais, às vezes sair com as amigas para falar sobre coisas supérfluas, abdicar-se de suas necessidades para suprir a dos filhos e do marido, dedicar-se quase que cegamente à criação de outro ser e, quase sempre, buscar algum tipo de conforto e estabilidade emocional/econômica na vida de casada. Fora outros atributos que eu não mencionei, mas que pintam muito bem o quadro romântico da "mãe".

A maternidade compulsória também fala muito sobre a velha crença de que toda a mulher que engravida é, necessariamente e "biologicamente", forçada a levar a gestação adiante mesmo quando esta não for a sua vontade. Não importa o que vá determinar a maternidade: não é sobre escolhas que falamos, mas sim sobre decisões tomadas antes mesmo de nascermos. São as instituições patriarcais que determinam o que a mulher pode ou não pode quanto a escolha de querer ou não gestar: é a família, as instituições públicas, as leis, a cultura, a mídia. É pelos brinquedos infantis femininos que dizem muito mais sobre a passividade de uma mãe ou dona-de-casa, do que sobre a verdadeira capacidade da mulher criar e se aventurar. É, com certeza, o processo ímpar da socialização feminina nos corpos infantis, juvenis e adultos de mulheres. Mesmo que muitas vezes a existência da maternidade se dê através de um processo de obrigação e não de escolha, é possível que nasça, sem romantizar a realidade, um laço forte entre uma mãe e sua cria. 

A mãe animal é, geralmente, caracterizada pela proteção e pela agressividade para proteger o ninho ou os filhotes. No mundo animal, onde aves, mamíferos e répteis se reproduzem para dar continuidade à espécie, e não para dar continuidade a sistemas patriarcais, a fêmea é, em geral, a gestora de todo o processo de sobrevivência. É ela quem faz o ninho e quem busca um lugar seguro para descansar, comer e criar os filhotes. É ela quem leva galho por galho para construir nos troncos das árvores um ninho para os filhotes, no caso das aves. Ela é quem vai atrás da caça para ela e para os filhotes. A fêmea animal (os felinos; guepardos, leopardos, leoas, etc.), sabem que antes de alimentar os filhotes, elas precisam de mantimento. Então elas priorizam a força delas e a força dos filhotes também. A fêmea animal não precisa do macho para sobreviver e para ter um lugar para ela e os filhotes. Ela precisa somente dela e de sua inteligência (as guepardos são muito inteligentes). Ela é quem caça o alimento e protege o ninho e o filhote. A maternidade no mundo animal não existe no mesmo propósito que a maternidade humana. Ela não é enfeitada: ela é sobrevivência. E o laço entre mãe, macho e cria, são laços estritos para fins reprodutivos e selvagens. O macho em muitos reinos/filos são usados para cópula e nada além disto. Não existe um macho que viverá para sempre ao lado da fêmea e vice-versa. 

Às vezes as pessoas brincam sobre as viúvas negras que comem a aranha macho no período de gestação dos ovos para nutrir a si mesma e as centenas de ovos que dela sairão. As leoas não morrem ao lado dos leões: das tribos mais antigas às mais pertinentes na África, o leão permanece com as leoas até certo tempo, e isto inclui o período de reprodução, e depois vão buscar outro lugar. E as leoas começam a formar a sua própria família, que também vai coexistir dentro desse processo de efemeridade. 

No mundo dos humanos a maternidade não é simplória. Ela é sistemática. Ela implica sobre o controle na vida e no futuro das crianças e das mulheres. A maternidade no mundo humano é muito mais sobre oprimir do que reproduzir. 

Das civilizações às tribos: o estupro, a maternidade e a heterossexualidade são as ferramentas do homem para violentar as mulheres.

Dito tudo isto e o restante que também não coloquei no texto por motivos que neste escolhi falar da minha mãe, parto então para a necessidade de escrever sobre o laço entre duas mulheres. 

Meu pai causou muita dor e sofrimento na vida da minha mãe e na minha também. Com certeza ele continua sendo o cerne dos nossos maiores sofrimentos em diferentes graus. Minha mãe me disse que quando teve que se separar do meu pai, ela teve a sensação de estar "tirando o coração com as próprias mãos". Ela usou este termo todo melindroso enquanto apertava com as garras das unhas o peito dela, na tentativa de materializar a ideia de tirar um coração com as próprias mãos. Mas na verdade o exemplo acabou tornando-se muito fálico porque é difícil a mulher conhecer alguma noção profunda do amor que não seja a violência romantizada. Meu pai nunca amou minha mãe. O amor não pode significar tanta violência. Aquilo era tudo, menos amor. Minha mãe não sentia amor pelo meu pai, mas fiou-se na ideia de que aquilo que ela tinha emocionalmente era amor. Afinal, é o que dizem, é a condição real do amor entre um homem e uma mulher: dessa equação subtrai-se o resultado por violência, resultando, portanto, em violência. E pelo sofrimento que ambas carregamos, sabemos que aquilo não é amor. Por que sabemos? Porque logo quando minha mãe me teve, ela ainda fazia várias "maluquices" por aí. Ela era uma mulher jovem, com seus vinte e poucos anos, e queria namorar, baladar, fazer coisas que normalmente as pessoas da idade dela faziam. Ela teve alguns períodos da vida dela em que ela rejeitava ser a minha mãe. Com certeza estes períodos foram muito difíceis porque resultaram em negligências que me custaram a seguridade. Antigamente eu sentia muita tristeza e descontento com minha mãe. Eu não me conformava pela falta de proteção quando eu mais precisei. Eu não me conformava ter fechado a minha boca  para denunciar os abusos que meu pai fazia comigo. Eu me calava porque eu queria confortá-la com o meu silêncio. Minha mãe e eu morremos e nascemos muitas vezes juntas. E muitas vezes separadas. A nossa relação foi atemporal e infinita em muitos prazeres e desprazeres. Sempre soube que ela era o meu porto-seguro, mas também a minha própria Revoada. Ela também sabia que muitas vezes o nosso convívio era muito mais um campo de guerra do que qualquer outra coisa. Palavras foram verbalizadas e fizeram muitos jardins morrerem dentro da gente. E todo o processo dolorido de nascimento e morte acabaram fazendo parte da nossa relação. Relação que tinha que sobreviver a todas as armadilhas patriarcais, a todas as socializações esmagadoras em cima de nossos próprios sentimentos. 

Apesar de todos essas eclosões gritantes de pavor e revolta entre dois corpos que tinham afinidade genética, eu não me imaginava viver sem a existência da minha mãe. Não porque eu me apoiava nela. Mas porque constituíamos algo muito forte que estava nascendo desde que ela teve que me criar sozinha e se abdicar de toda a sua vida adulta para cuidar de uma criança: coisa que nenhum homem entenderia, e sentimento que não seria possível ao humano do sexo masculino. Hoje eu entendo os esforços e também os desesperos, e toda a angústia que ela carregava. Não tenho filhos, mas eu vivi há dezessete anos com a minha mãe. Como eu disse, o amor patriarcal é uma construção social para oprimir e adoecer o emocional das mulheres. Não é amor. O amor, talvez, nasça de um significado muito maior e inexprimível. Cabe a nós, mulheres, ressignificar o sentido de amor entre nós mesmas. Eu amo a minha mãe porque ela me deu a oportunidade de nascer e morrer tantas vezes e mesmo assim continuar me amando. Eu amo ela porque entendo o cansaço e a frustração, a bebedeira e o corte de cabelo que definiu um quadro depressivo em sua vida. Eu cuidei da mãe enquanto ela estava triste e obscuramente assolada pela tristeza. Ela me cuidou inúmeras vezes até me fazer pensar que nosso relacionamento era sobre o amor entre duas fênix. Nós renascíamos das cinzas todos os anos e aprendíamos que a cada renascer  a transformação era inevitável. Minha mãe sempre foi a confiança para questões mais sérias, não porque ela também era "menina", mas porque a confiança entre duas mulheres quando é assertiva tende a florescer, florescer e florescer, até criar um jardim cheio de "confianças" e férteis terrenos para reconhecer sentimentos ligeiramente fora dos eixos patriarcais. Minha mãe e eu depuramos os fatos fazendo a reconstituição do cordão umbilical, aquele que me nutriu enquanto eu estava quente e abrigada no ventre dela. Quando fizemos esta reconstituição, vimos nascer uma mulher e uma menina que consistiam em um laço forte e quase imbatível. Uma compreensão que acontece quando duas mulheres conseguem dar vida a esse tipo de conexão. Nascemos dos escombros dos assuntos mais problemático às atitudes mais afrontosas uma para outra. Descobri minha mãe como exemplo de força, superação, dor e batalha constante pelo espaço no mundo. Parei de reduzir minha mãe, de achá-la boba, fútil, cabeça dura, chata. Parei de idolatrar os homens e achar que minha mãe era algo a menos. Descobri e percebi a existência da minha mãe como a minha maior fonte de conexão. É do amor pela minha mãe que nasceu a sensibilidade para o amor e o cuidado com outras mulheres. É o amor pela mãe, a reconstituição do significado de amor pela minha mãe que pude canalizar a compreensão entre dois corpos femininos em afeto e carinho. Passei a gostar de meninas, a admirá-las, e me confundia nos processos de socialização, sentia a competição entre nós (quem é mais mulher, "mais bonita" do que a outra?), mas sentia intimamente que o amor consistia em afeto, em carinho, compreensão, cuidado, generosidade, e, também, nascimento de novos sentidos. Se fosse uma educação na visão falocentrada desde pequena, com a convivência direta do meu pai, talvez eu nunca fosse perceber as transformações no meu relacionamento com a mãe e no nascimento individual, baseado nas experiências conceituais afetivas, do amor pelas mulheres desde cedo. 

Eu e a mãe vivíamos um novo momento onde olhos estavam sendo aberto para nossas necessidades. Encontramo-nos novamente em uma compreensão material que nenhum homem poderia um dia entender. Estive aberta para as suas falas corriqueiras, sonhadoras, bobinhas e chorosas. Estive aberta para receber as suas dores e as suas aflições em horas à fio de choro incansável nas tardes de sábado. Aprendi, com o tempo, a notá-la, a percebê-la, a vê-la alguém que jamais havia significado tanto para mim. Ela era tudo mesmo quando desfazia-se em tantos nada. Ela ressurgia como um pássaro das cinzas de suas próprias superações e lutas individuais. Ela era, com certeza, a minha ideia de mulher insuperável, de mãe fálica e forte. Nunca precisamos de um pai: ela andou com os próprios pés, caminhou, sujeitou-se, ergueu-se, caiu, reergueu-se, fez morada, alimento e proteção no nosso apartamento. O que mais me emociona na minha mãe é que ela significa tudo para mim em um sentido tão abundante desta frase. Ela me aceita. Ela tinha, com certeza, a ideia de filha boa, educada, não-problemática, saudável, estudante assídua da escola. Ela adoraria me ver no colégio militar. Mas ela sabe, depois de tantos nascimentos em nós mesmas, que isso nunca foi, de fato, a minha vontade. Eu não sei o que quero ser, mas sei daquilo que gosto e não gosto. Ela apertou a minha mão e disse filha eu tenho muito orgulho de ti do jeito que tu é. Às vezes a gente briga numa tentativa de disputar qual vontade vale mais que a outra: mas aprendi que ceder também é respeitar a minha vontade. Minha mãe trabalha e estuda e sempre diz que a vida de preta não é fácil. Ela diz "vida de pobre e preta não é nada fácil!", eu penso que queria que as coisas fossem mais fáceis para ela porque ela merece. 

A nova reconstituição deste cordão umbilical que eu e minha mãe fizemos inconscientemente ao longo de nossa história, se dá, principalmente, pela tentativa de superação dos problemas que emergem do patriarcado para dentro das relações maternais e que exigem um rompimento a longo prazo, uma nova construção e entendimento de amor e de maternidade, uma nova aceitação e ajuda, uma nova percepção e reconhecimento da existência da mãe e da filha, da mãe com a filha, descaracterizando os papéis sórdidos e limitadores da mãe imbatível e mansa, e da filha que odeia a mãe e que não percebe nela um talento que sobressai as noções patriarcais. O homem "invisível" em uma família onde há uma mãe e uma filha vivendo juntas, continua muito latente, e as perspectivas de socialização e de maternidade também continuam latentes. O patriarcado que obriga as mulheres a serem as suas mães em formatos automáticos, robóticos, romantizados e opressores, ainda está latente, e é um sentimento constante de revolta a isso. Mesmo que eu nunca tenha tido um pai dentro de casa e na minha vida de forma presente, este Pai que falamos é o Pai social, de caráter ideológico, é o sistema do Pai, é o sistema pátrio. Minha mãe nunca teve dentro de casa um homem para mandar nela. Ela não é casada porque não suporta essa ideia. Mesmo que tenha conhecido o meu padrasto depois de mais de quinze anos sem namorar sério, ela ainda mantém o comportamento insistente de matriarca dentro de casa: ou o meu padrasto dança a música dela, ou ele está fora. Assim ela diz. Quem manda na casa é ela, então ela se sente como as leoas em defesa do território: porque a luta para sobreviver sem ser esmagada pelo patriarcado é grande demais. E mesmo com essa característica dela de "indomável" e de "difícil" ainda assim não desmantela todo o processo a que é submetida ao seu corpo e ao seu pensamento. 

Como a reconstituição entre uma mãe e uma filha é possível? Não sei. Não posso falar por todas as filhas e por todas as mães porque esse nascimento variável das relações acontece de forma não-planejada e vai muito de acordo com a história individual e coletiva das mulheres a qual pertencemos: eu pertenço a classe das mulheres negras. Mas precisamos conversar sobre isto, falar a respeito de nossas relações com as mulheres que nos criaram e ouvi-las e nos fazer ser ouvida por elas também. Eu não imagino viver sem a minha mãe. Saber que ela é a mulher que desde pequena eu sempre sonhei ser, me conforta muito. Meu maior exemplo de superar a ênfase fálica do amor masculino é ela: arrancou metaforicamente aquele sentimento para dar luz ao ressurgimento de uma nova mulher. Porque sabemos que não saímos igual de um relacionamento. 

A mãe também vivia dizendo que homem nenhum seria encarregado de me fazer feliz, que a felicidade depende da gente mesmo. Talvez eu tenha errado nessa premissa e decepcionado a mãe, porque depositei expectativas bem ilusórias em um homem que me feriu muito. Para chegar aqui e escrever sobre isto com certeza a alusão ao castelo da princesa e do príncipe teve que ser destruído algumas vezes para que eu me desse conta que não existem princesas e nem príncipes. Tive que redescobrir em mim faces de superação e renascimento na mulher que vi minha mãe dar à luz: ela mesma voltava mais forte de cada recaída em algum lado obscuro da vida. E por ser mulher e reconhecer em mim tantas coisas da mãe, em personalidade e comportamentos, e no próprio corpo, é que acabei passando a amar as mulheres e a reconhecer que o amor era muito mais sobre renascer e reconstituir do que de machucar e violentar. Quando falo que minha mãe é a representação do Amor, é porque o amor entre duas mulheres é um renascimento constante de união e rompimento, e isto inclui um processo definitivo de noção de "amor". Porque o amor entre duas mulheres nasce de algo em primazia, ou seja, primário, primitivo. O início não pode vir do amor de um homem, de um pai, porque são noções de amor violentas e abusivas. A noção de amor deve, por natureza insurrecional, ser ressignificada a cada instante pelas mulheres. O amor que tive da minha mãe é o amor que sendo ela a leoa e eu a sua cria, fizemos perceber e crescer entre nós aos poucos essa nova 

A noção primária de amor sem ser nocivo é quando sinto que as mulheres tem uma característica de assimilação emocional e física que perpassa muitas vezes o sexo feminino. O amor da mulher com profundidade e transparência, sem adjacentes opressores do patriarcado, corresponde a uma criação de amor que se individualiza e incorpora em cada relação entre o coletivo de mulheres. O "natural" da vida biológica deveria ser duas mulheres se amando, cuidando, formando ninhos, conceitos e criações, reproduzindo suas crias a fim de manter a espécie fraternal e selvagem dos corpos femininos. A noção de amor deveria por natureza estar em constante ressignificação. Porque as existências que mergulham e sobem à superfície, são as mesmas que estão aptas a vivenciar um novo modo de relacionar a ideia de amor (talvez eu esteja recriando intimamente um sentimento apaixonado através de Valeria Solanas por um mundo só de fêmeas). 

Minha mãe nunca me maltratou, nunca me feriu, nunca me violentou. Ela não representa a violência que o meu pai representa para mim. O corpo feminino não me assusta, porque ele nunca me introjetou nada, diferentemente do corpo masculino. O corpo feminino mostrou-se forte para mim naturalmente, esganiçando o sufoco da vida socialmente falocentrada. O corpo feminino não precisou de desenhos e de culturas para superar-se, renascer. De um lado eram as bruxas curando outras mulheres e do outro lado eram mulheres reinventando a si mesma na busca de um novo nascimento que rompesse com a criação já estabelecida da mulher submetida à socialização. Eu ouvi, assisti e vivenciei ao lado de uma mulher, a que me gestou, geriu e pariu a ressurreição e a troca cíclica de cada período de luto e de morte. Luto pelos sentimentos que ela teve que matar para poder sobreviver, e morte pelo falecimento de sua antiga-roupagem para um corpo que era seu. Essa mulher é o arquétipo da Mulher Fênix que eu vi minha mãe ser para mim e eu ser para nós. Essa mulher me mostrou todas as capacidades íntimas de que ser mulher negra é estar constantemente respirando com dificuldade: incrivelmente ela criou o seu próprio aparelho respiratório e driblou, mais uma vez, a quase-asfixia patriarcal. Em seus ombros, braços, ventre e peito era ela a genitora da vida de várias mulheres que, eventualmente viriam a pisar na cabeça de muitos homens. O homem que achou que minha mãe jamais conseguiria livrar-se dele é o meu pai. Na cabeça egocêntrica daquele homem a minha mãe seria para sempre aquela que esperaria ele voltar para casa  quando ele bem quisesse. Ele achou que minha mãe iria servi-lo sexualmente sempre que ele estivesse a fim e não estivesse com outras mulheres: afinal, para ele a minha mãe nunca passou de um "buraco quente" e eu um resultado também visto como um "buraco quente". Minha mãe bateu o carro quando decidiu que jamais voltaria a se relacionar com o meu pai. Ela bebeu tanto e saiu para dirigir propositalmente, provavelmente no intuito de recorrer à morte como um escape ao sentimento horrível da separação. Ela diz que o homem que ela mais amou foi o meu pai, mas eu digo pra ela que nunca foi amor. Depois da mãe quase ter morrido (eu tinha meses de vida), ela iniciou um processo de amadurecimento, e deu luz à uma nova mulher que surgia depois daquela separação. Ela viajou comigo pra Santa Catarina e só avisou quando estava lá. Me fotografou no carrinho de bebê e aproveitou o hotel para descansar os pensamentos e cuidar dela e de mim. Quando a mãe se viu completamente sozinha ao me cuidar, provavelmente ela adormeceu e acordou novamente com um novo penteado: ela abriu portas à leoa que queria entrar em sua vida e começou a planejar meios para assegurar melhores condições para a nossa vida. E então esse processo requisitou uma força descomunal, um enfrentamento quase revanchesco à sociedade patriarcal racista. E deu à cara por ela e por mim. 

Quando conheceu um homem também misógino, mas menos presente em sua vida, pela internet (após anos de separação e afastamento), ela também sofreu e rompeu com as mentiras por ele contadas, abrindo, assim, um processo para uma nova etapa: o seu quadro depressivo. Minha mãe é uma mulher negra de longos cabelos lisos com cachos na ponta. Seu cabelo sempre foi natural. Na época o comprimento do cabelo estava grande. Quando ela entrou no quadro depressivo ela cortou os cabelos até as orelhas, e no outro dia olhou-se no espelho e começou a chorar dizendo que estava horrorosa, feia, horrível. "O que eu fiz com meu cabelo?" e eu dizia que estava bonito. Ela não levantava para ir para o trabalho sem que eu acordasse ela meticulosamente com delicadeza: eu soprava palavras gentis nos ouvidos da mãe para ela acordar um pouco melhor do que estava. Aos poucos ela se entregava um pouco mais ao vinho e as músicas tristes e chorava sempre. Durou 5 meses. Quando ela finalmente adentrou o sexto mês daquele ano, novamente eu via personificar na minha frente outra mulher. Era a minha mãe, isto eu sabia, mas diferente. Ela estava amadurecendo tanto quanto seu antigo rompimento com o meu pai. Ela me dizia que dessa vez ela tinha conseguido mais rapidamente, o que levou cinco meses para serem superado, com o meu pai foi anos. Mas ela disse que nem amava aquele homem, mas tinha se apoiado nele por carência. A minha mãe havia renascido de novo no sexto mês e agora estava novamente radiante, me acordando para ir à escola, trabalhando e enfrentando os desafios de ser uma mulher negra no mercado do turismo no interior do RS. 

Lembro que em 2014 eu e minha mãe rompemos a nossa relação por duas semanas: não nos falávamos, e sempre que isto acontecia, pedras e paus eram jogadas para todos os lados, inclusive acertando onde mais doía. Sentimentos foram apagados e de repente eu sentia muito vazio pela minha mãe e ela comigo. Não sei ao certo como ela se sentia, mas lembro que a minha solidão se deu por conta dessas duas semanas de palavras odiosas que nós duas proferimos. Lembro como se fosse hoje do e-mail gigante que ela me mandou falando que não seria mais a minha mãe, que não falaria mais comigo, somente coisas necessárias, que tudo que eu quisesse eu teria que começar a batalhar para ter, que em tantas palavras e novos regulamentos, não tínhamos mais nenhum afeto uma pela outra. 

Em desespero total e absurdo eu sofri por dias a fio sem entender direito porque minha mãe sentia-se assim, tão raivosa e furiosa comigo. Eu sabia que havíamos tido atritos antes desse e-mail de rompimento, mas nada que justificasse essa asfixação afetiva e esse corte dilacerador entre duas pessoas que tinham tantas coisas uma com a outra. Passou-se essas duas semanas e aos poucos as coisas foram se afrouxando, os sentimentos obscuros e radicais foram indo embora, até que eu e ela arriscássemos recomeçar uma nova reconstituição entre mãe e filha. E lá fomos nós novamente: sem notar tínhamos dado luz a duas novas pessoas diferentes, ela a mulher mais sensível que eu imaginei que fosse, e eu a menina mais empática com os sentimentos da mulher que estava em minha frente. Passos de crianças que recém ousam a caminhar eu e minha mãe estávamos fazendo a preparação para o nascimento de uma relação que viria, futuramente, ser a nossa salvação. Ela iria me salvar da morte, como fez em 2013 antes do rompimento. Em 2015 ela já estava apta e preparada para me segurar quando eu caísse. Eu quase fui embora, e se não fui é porque minha mãe é esse quase na minha vida. Quando renascemos para nós duas foi o surgimento necessário. Quando lembro daquele e-mail em que a minha mãe estava toda brava e complicada nas palavras, eu ainda sinto um frio na barriga: eu estava órfã da minha mãe por duas semanas com ela morando na mesma casa que eu, dormindo no mesmo quarto que eu. Como era difícil fingir que ela não estava ali sabendo que estava. Tive que matar as minhas vontades em dizer "me desculpe qualquer coisa mãe, não me deixe!", e permitir que o tempo trouxesse esse reconhecimento entre nós duas. E foi, ao natural, o renascimento de dois corpos unidos que se deu após as duas semanas. 

Minha mãe é tudo que eu tenho: ela é a pessoa que me ensina a amar, a ser generosa, a brigar por mim mesma e por aquilo que eu acredito. Eu nasci dela e depois renasci milhares de vezes em nosso relacionamento. Ela me deu a luz e depois deu a luz a milhares dela que nasceram ao longo da vida e do nosso relacionamento. Ela é a pessoa primordial: a esfinge que segura as pontas de um castelo que criamos para nós duas morar. Sem príncipes, sem ilusões. A minha mãe representa a vida. Ela pisou em cima da vida que o casamento com o meu pai havia reservado para ela: submeteu às suas próprias vontades matando, assim, o sujeito que a feria. Cobriu-se com o próprio sangue a fim de fortalecer a pele e cicatrizar feridas. Criou o aparelho respiratório que iria lhe salvar da morte por asfixia na sociedade masculina e branca. Surgiu e ousou renascer milhares de vezes como a Fênix em um poder supremo de soberania e profundidade. Tornou-se a força e a fraqueza com tudo que sentiu e que guardou para si. Deu-me a vida e tirou a vida do meu pai quando decidiu que iria viver apenas eu e ela para a nossa segurança. Me ensinou que ser mãe é para poucas, e que a escolha não deve ser pedida e sim imposta. Ela escolheu depois o que fazer com a maternidade.

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