Quantas Julias Cabem Em Nós

Por correr em sigilo de justiça, os nomes de todos os participantes deste caso foram omitidos.
O primeiro indício foi agitação noturna. O sono agora era inquieto, com algumas frases soltas: “não… para… não quer”. Apenas o que o vocabulário de uma criança saberia pronunciar. Julia tinha dois anos e meio quando surgiram os primeiros sinais do abuso sexual. Hoje tem sete anos, e ainda permanece em situação de risco.
Logo em seguida ao sono turbulento, desenvolveu pavor por qualquer figura masculina, salvo raras exceções. Pequenos movimentos a assustavam, mesmo que não direcionados a ela. Fechar a porta do quarto a aterrorizava. Paralelo ao medo surgiu um comportamento estranho: brincadeiras sexualizadas. Num dia, levantou a roupa da boneca, colocou-a no colo e proferiu uma frase que chocou a mãe e avó materna:

“Não gosta, vovô… não gosta…”

Todos os comportamentos apresentados por Julia, uma menina de Campo Grande, MS, são considerados comuns em crianças vítimas de violência sexual, em especial o abuso na primeira infância. Foi a avó materna, Ana, que relacionou a drástica mudança na neta com os hábitos estranhos do abusador: excesso de visitas, no meio da semana; encorajava os pais da menina a saírem, oferecendo-se para ficar com ela; em todos os passeios, mesmo que durassem poucas horas, Julia voltava de banho tomado; e sempre, sempre retornava dos passeios com um brinquedo novo.
Foi num sábado, por volta das 20h, que a criança retornou de mais um passeio com o avô paterno. Calada, passou aos braços de Ana, a avó, com uma estranha recomendação dele:

“Direto pra cama, hein, Julia.”

Seu corpo doía. Tamanho era o medo que sentia que esperou entrar em casa com a avó, deitar-se num colchonete, para denunciar, com a mãozinha sobre a genital: “fez dodói”. Acreditando ser vontade de urinar, a avó a levou ao banheiro, cobrindo-a de carinhos, até que a menina desatou a chorar: “machucou! fez dodói!”. O choque, a paralisia e o horror e entorpeceram a avó ao analisar a genital da neta. Misto de confusão e inconsciência. O que era aquela violência, afinal? O que fazer?! A quem recorrer?!
Ana recorreu a um hospital infantil junto da madrinha de Julia. O pediatra que a atendeu, cuidadosamente, indagou a menina: “Conta pro tio, quem fez isso com você?”

“Foi no colo do vovô.”


ju

Estarrecida, a avó de Julia deixou-se cair numa cadeira. O pediatra emitiu laudo médico confirmando a violência sexual. Prescreveu os cuidados médicos e encaminhamento para o IML, e advertiu: “cuide dela”. Este foi o início de uma marcha exaustiva e frustrante para Ana. O abuso foi o início de uma luta interminável pelo resgate da criança e pela própria saúde mental.
O caso de Ana e Julia me remete e muito ao caso de Christine Collins. Logo após a noite aterrorizante no hospital, uma sucessão de erros, divergências, abandonos e imprudências reverteram a situação para a própria avó, que precisou agir sozinha para garantir a segurança de Julia.
O que era claramente um caso de estupro de vulnerável foi transformado em conflito familiar. Isso porque o IML emitiu que “não houve rompimento de hímen”. Logo, se não rompeu, não haveria conjunção carnal. E se não houve conjunção, não haveria abuso. E se não houve abuso, era “óbvio” que a avó materna “criava” uma situação de conflito familiar, para tomar diabolicamente a guarda da neta, conforme alegação do avô paterno. E sim, isso foi apresentado e aceito pelo Poder Público de Campo Grande. A avó entrou na delegacia para denunciar um abuso. Saiu dias depois sendo ela própria acusada de estar gerando um conflito na família.
Já que a menina era virgem, o estupro era “invenção”. E a guarda foi revertida da mãe de Julia para a família paterna.
Ana empenhou uma batalha imensa para provar a distorção do abuso, que caminhava em vias de incriminá-la. O depoimento da neta, a prescrição do pediatra, testemunhas e parecer psicológico: nada foi suficiente dentro do Poder Público para derrubar as simples palavras: “sem-rompimento-do-hímen”. É válido mencionar que o IML fez uma análise de “conjunção carnal”, e não uma verificação específica e mais apurada de possíveis atos libidinosos.
E de uma maneira inexplicável, Ana foi acusada de ter transtornos mentais. Um laudo irregular emitido por uma psicóloga que jamais a havia analisado, e que sequer conhecia a avó, afirmou que Ana tinha desequilíbrio mental. Esse laudo foi a base- errônea – de que a avó estaria criando conflitos, por ser mentalmente desequilibrada, para ficar com Julia exclusivamente.
Ana reuniu forças e buscou ajuda. Só recentemente, depois de anos na justiça, conseguiu provar que a interferência de terceiros tornou o processo de Julia contra ela, onde Conselho Regional de Psicologia admitiu que o laudo não tinha qualquer veracidade clínica e científica. Só muito recentemente conseguiu provar que de fato, a criança passou por graves abusos sexuais. E só aos seis anos de idade, Julia conseguiu ser  de fato ouvida em seu mais doloroso relato: a violência sexual era praticada pelo avô paterno.

 
ester


Hoje em dia: 
 
"Nós conseguimos. Julia conseguiu.
A menina que há 5 anos sofria abuso sexual do avô paterno pôde, hoje, voltar para casa.
Graças ao apoio dos nossos leitores e de sua avó, a justiça reverteu a guarda, que agora é exclusiva da mãe.
Com muita emoção, agradecemos aqueles que assinaram a petição de medida protetiva, pressionaram o poder público e se solidarizaram com a história de Julia e Ana." - Informado pelo As Mina na História.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Patriarcado na Composição das Emoções

A história que nos contam

O estupro e a raiva