ESPAÇOS CARENTES - Feminismo radical e inclusão

Eu estive lendo alguns blogs escritos por feministas radicais brasileiras e me deparei diversas vezes com ideias muito criativas, enunciados de artigos que pareciam, de primeira mão, ser bastante substanciosos, e algumas outras coisas que eu, enquanto mulher negra, bati na tecla diversas vezes e pensei sobre espaços carentes. 

Quando uso este termo, "espaços carentes", falo sobre como é problemático generalizar as mulheres em uma mesma classe não fazendo análise, crítica e menção às diferenças étnico-raciais dentro desta classe. Quando muitas feministas utilizam o termo mulher, compreendemos, rapidamente, que ela utiliza de um termo abrangente para se referir a uma classe de pessoas que são socialmente definidas pelo sexo masculino enquanto "mulheres". Esquece-se de introduzir ao movimento de feministas radicais o verdadeiro debate - não superficialmente -, da realidade das mulheres não-brancas. Vivemos em um mundo onde as violações cometidas contra as mulheres são inúmeras e perpassam as mais diversas esferas da vida na sociedade patriarcal. Mas não podemos esquecer que dentro desta classe - a classe "mulher" - temos diferentes realidades que em diversos momentos históricos apresentaram posições hierárquicas e opressoras. 

Após anos depois da abolição da escravidão nos EUA, foi lançado no ano de 1977 uma telesérie chamada Roots, em português, Raízes, com base na obra de Alex Huley, Negras Raízes. Fora tantas partes interessantes que o filme, ou série, documenta em várias cenas onde mostra a resistência dos negros escravizados e a persistência em manter a identidade originária de suas raízes, uma cena me chama muito atenção. A filha de Kunta Kinte, Kizzy, passa a ser cobiçada por um negro que comprou a sua alforria, ou como eles chamavam, a sua liberdade, e estava de passagem na fazenda onde Kizzy morava. Ela possuía o Chicken George, filho do senhor da casa. George falou à Kizzy "mãe, por que você não dá uma chance a ele?" (ele se referia ao negro alforriado), e Kizzy imediatamente respondeu: "não quero servir a dois senhores". 




Quando ela falou isto, não exatamente nestas palavras, mas neste intuito, ela se debruçou na realidade das mulheres negras que servem ao longo da vida dois possíveis senhores. Não no sentido de ascensão de classe, um rico e outro pobre, um branco e outro negro. Mas do sexo masculino, porque Kitty, assim como outras mulheres que foram escravizadas, sabia que assim como homens brancos, homens pretos também tendem a oprimir, porque o sexo masculino, independente de cor e classe, passa a ter traços de opressão semelhantes em várias esferas, e isto atinge as mulheres em diferentes proporções. 

Quando falo que o feminismo radical carece da existência de mulheres negras é porque realmente se vê uma grande disparidade étnico-racial dentro do movimento feminista radical. Temos muito mais mulheres brancas produzindo conteúdos e relatos sobre o tema em específico do que mulheres pretas inseridas neste meio falando a respeito disso. Não podemos pensar que todas nós mulheres estamos em pé de igualdade. Podem acusar que estou sendo interseccional, e na verdade não me importo em qual rótulo queiram enquadrar aquilo que eu disserto. Estou falando sobre a necessidade de espaços majoritariamente dominados por mulheres brancas cederem a este debate racial de forma a contribuir para que possamos juntas caminhar numa perspectiva reparatória, inclusiva, libertária e feminista. 

Mulheres brancas podem oprimir mulheres não-brancas (indígenas, pretas, pardas?) 

 

A resposta parece ser bem simples na óptica de uma mulher negra. No contexto atual de opressões étnico-raciais, temos de sofrer constantemente discriminação da mulher branca - geralmente da classe média alta ou não -, quase que por toda a vida, e a redução da nossa dignidade pelo homem branco. Quem, de mulher preta, nunca ouviu uma mulher branca perguntar como é que a gente faz para pentear o cabelo? Quem de mulher preta nunca teve de estar numa condição onde o racismo não era velado, mas sim escancarado?

Não falo sobre demonizar mulheres brancas. São mulheres e isso é um traço em comum que nos une enquanto classe. Não se pode ignorar os processos históricos que resultaram na assimilação de MULHER enquanto mulher branca e de MENOS QUE HUMANO -portanto, não-mulher - como a mulher preta e das relações que surgem dentro dessa perspectiva patriarcal. Existe a mulher branca rica, a mulher branca pobre e existe os dois polos da visão da mulher "boa, para casar" e da mulher "puta, para descartar", o que, na verdade, ambas condições embutidas às mulheres são absolutamente violentas e opressoras, mas isto não é padrão para a mulher preta porque ela leva outros adereços dentro destes estereótipos "morais".

Como nos veem a partir da visão patriarcal a existência de uma mulher negra? Vivemos em um país em que teve longa duração no processo de escravidão e várias mulheres africanas e afrobrasileiras nasceram sendo estupradas por um senhor branco, com alvará da sociedade branca e colona, que incluía homens e mulheres brancos, da elite aos menos favorecidos. O negro, em geral, era visto como um animal a ser domesticado, ensinado, doutrinado para atender aos mandos do senhorio. As negras também eram vistas como animais, porém animais com uma vagina (o que significava fazer trabalho triplicado), tinham de aprender tudo que um homem negro aprenderia, mas também deveriam ter a obrigação de ceder às noites infernais o seu corpo ao homem branco, que estuprava, escravizava e aniquilava por toda a vida daquela mulher a sua humanidade. E quando falo disso, digo que o homem negro servia 1 vezes e a mulher negra servia 3 (os senhores, o homem negro e a maternidade). Muitas negras não sabiam que eram gente e morreram pensando que eram "aquilo" e não "alguém". Muitas sabiam, lutavam e relutavam, não viviam em resiliência e silêncio, e todas terminavam em morte. Onde entra a questão da mulher negra na perspectiva patriarcal da atualidade? Ainda somos vistas como animais a serem usados para serviços gerais, domésticos, em épocas de carnaval não passamos de carismáticas "mulatas" (como eu disse, animais) a serem prestigiadas, usadas e jogadas fora, e seguimos sendo vistas com descaso por toda a sociedade e sendo violentadas e agredidas em todos os lugares. Também somos vítimas da sexualização feminina e dos atributos de mulheridade que o patriarcado industrial conseguiu nos colocar.

O Brasil é um país que foi construído a base de sangue e de corpos que morreram injustamente num território que era seu e que não era seu. 

Temos uma realidade que aponta que meninas indígenas saem de suas aldeias, forçadas pelas políticas do agronegócio e para poder ganhar a vida nas cidade  se prostituem nas estradas e acabam migrando para uma situação social de marginalização, prostituição e drogadição.

Temos uma realidade que diz sobre o acréscimo de 13% a mais de violência doméstica na vida das mulheres pretas, enquanto cai em 9% de mulheres brancas. (Maria da Penha, 2015/2016).

Temos uma realidade onde mulheres pretas periféricas são arrastadas a 360km no asfalto pelo carro da Polícia Militar. (Cláudia, 2014)

Temos uma realidade onde mulheres pretas são assassinadas e seus corpos são despidos  e encontrados jogado na lama, com sinais de estupro, perfurações e estrangulamento. ( Francisca, 2016)
 
Temos uma realidade onde mulheres pretas uniram forças para formar um coletivo de mães que perderam filhos e filhas (1990) em situação de violência. Mães de Acari.

Temos uma realidade onde jovens negras de 15 anos engravidam e procuram o Sistema Único de Saúde da cidade em trabalho de parto, mas são atendidas somente três horas depois de chegar. Apesar de apresentarem demora no parto e sinais de complicação de alto risco (com pressão alta e pré-eclâmpsia), a equipe hospitalar recusou-se a encaminhar para o parto cirúrgico e realizaram manobras para forçar o parto normal. Isto resultou em eclâmpsia, ruptura do útero, hemorragia, aspirou vômito, e as jovens vítimas do descaso, são transferidas em estado grave para um hospital, onde vem a falecer horas depois (2015, Rafaela).

Alguns relatos sobre a realidade da mulher preta.
Quando falamos sobre violência da mulher branca e da mulher negra falamos de mulheres com diferentes traços de opressão. E que traços são estes? Opressões históricas baseadas na cor da pele, na etnia, nos processos de genocídio de um povo em larga escala e no silenciamento de milhares de vidas negras que sempre tiveram que ser abafadas e engaioladas como animais em cativeiro. De quem era estas custódias, afinal? Do branco. Da pessoa branca. Do homem branco que tinha posse da mulher branca que tinha posse do homem negro que tinha posse da mulher negra. Essa era a escala que se manteve de séculos em séculos sem desatar. Somos mulheres e sofremos opressões em comum. Se penso que sim? Sim, penso que sim. Somos mulheres com diferentes processos históricos, e precisamos saber desta diferença e admitir que ela existe, que não somos todas iguais e nem nunca fomos na História. Opressões iguais sofremos, mas não em completude. A vida da mulher negra importa, e ela precisa ser visível, o mundo e as pessoas precisam saber que elas realmente existiram em uma situação absurda na história, mas que sempre tivemos grandes referências de luta e resistência e não eram lideradas exclusivamente pelo homem preto, mas sim pelas mulheres negras que ousavam lutar contra dois senhorios não muito distintos na opressão sexual: o homem branco e o homem negro. Estou aqui para dizer que essas mulheres existiram e elas sempre vão ter o espaço para que o grito pela liberdade delas sejam reconhecidos. Não porque foram exclusivamente vítimas da feminilidade (às vezes algumas feministas radicais reduzem o movimento feminista radical à luta permanente contra a feminilidade), mas também vítimas da desumanização mais temida do ser.

E não podemos dizer que o feminismo radical levanta bandeiras de todas as mulheres designadas mulheres quando temos pouquíssimas mulheres negras verdadeiramente dentro do movimento feminista radical contribuindo para que este não se restrinja a um espaço quase exclusivo e majoritário para mulheres brancas, acadêmicas e classe média em ascensão.

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