O estupro e a raiva

Em desabafo escrevo para mim mesma e para aquelas que comigo se identificam e que com elas eu me identifico. Às vezes ser mulher negra não é nada fácil, e quase sempre nunca é. Mas de vez em quando, repentinamente, nos pega de surpresa um sentimento tão grande e imenso de vazio e cansaço que é difícil explicar. Estupros, incestos, violência doméstica, violência nos partos, abusos sexuais na infância, doenças decorrentes a maus tratos sexuais, todos estes são fatores que fazem com que a vida de muitas mulheres e meninas se tornem imparcial e uma só. Não importa em qual parte do mundo estejamos: estamos sofrendo, morrendo, tendo que conviver com as lembranças de um abuso sexual cometido por algum homem. É horrível. É absurdo ter que viver assim, doente, pensando nos espaços vagos que tantos traumas e exigências nos colocaram ao longo da vida. É, muitas vezes e na maioria delas, muito difícil ser mulher. E quando se é negra, bom, a dificuldade que já é insuportável consegue piorar. 

Uma trégua sem estupro é o que eu também quero. Assim como Andrea Dworkin falou: 
Nós, mulheres. Nós não temos tempo para sempre. Algumas de nós não têm uma semana ou um dia para vocês discutirem o que seja que vá permitir que vocês saiam às ruas e façam algo. Nós estamos muito próximas da morte. Todas as mulheres estão. E nós estamos muito próximas do estupro e estamos muito próximas do espancamento. E nós estamos dentro de um sistema de humilhação onde não há escapatória para nós. Nós usamos estatísticas não para quantificar as feridas, mas para convencer ao mundo que as feridas existem. Estas estatísticas não são abstrações. É fácil dizer “ah, as estatísticas, uns as escrevem para um lado e outros para o outro”. É verdade. Mas eu escuto sobre estupros um por um por um por um por um, que também é como eles acontecem. Estas estatísticas não são abstratas para mim. A cada três minutos uma mulher é estuprada. A cada dezoito segundos uma mulher é espancada. Não há nada de abstrato nisso. Está acontecendo agora enquanto eu falo.
Resultado de imagem para elizabeth thomasÉ imensamente difícil aceitar a nossa realidade de sofrimento. Estamos morrendo aos montes e ninguém além de nós mesmas compreende que tem algo muito errado nesse processo histórico de aniquilação. Nossos corpos e nossas mentes não conseguem mais pensar em nós fora dos moldes patriarcais da indústria: não aprendemos em nenhum momento de nossas vidas de mulher a pensar verdadeiramente sobre nós e nossas escolhas. A socialização nunca foi permissiva à nossa capacidade e a nossa existência. A socialização é tão apertada, carente de ar oxigênio, que já morremos tantas vezes até assimilarmos que nossa vida é muito mais sobre estar no piloto automático do que decolar. Em qualquer lugar que formos o assédio é o canto mais próximo de um estuprador, e o mais aceito também. Aceito e materializado da mesma forma como aqueles sites cheio de uploads de vídeos  em que mulheres e crianças são forçadas a atender a perversidade masculina em todas as dimensões: a pornografia. A pornografia e o mundo repleto de "fantasias" eróticas, masoquistas, pedófilas e perversas é realmente a arte virtual do domínio do homem. Nenhum deles é doente. Não mesmo, não é doença. É dominação. A dominação sobre nossas vidas em todas as suas dimensões é aceita na sociedade. As plataformas digitais aceitam essa dominação. Em qualquer lugar que estejamos, o medo do Pai e de todos os homens é constante. Eu vou ser sincera. Eu tenho medo. Eu aprendi a rejeitar o corpo masculino e a sentir uma repulsa forte e muito maior do que um enjoo gastrointestinal. Um verdadeiro pavor maior que eu. Eu vejo homens e me sinto muito triste, profundamente triste e com vontade de sair correndo. Eu fui vítima de abuso sexual na minha infância e hoje vivo um processo de levantar dos escombros da escuridão e falar sobre isto, porque sei que todas nós em algum momento da vida fomos ou iremos passar por um abuso. Ainda assim, é a primeira vez que abro isto em uma plataforma digital, e não vou dissertar muito a respeito porque tenho dificuldade. O homem, para mim, representa perigo, violência, terror. E é exatamente isso que eu sinto quando os vejo no poder político, científico, institucional, clínico, histórico. É exatamente esse pavor e esse medo que eles passam: porque eles devastam e destroem as nossas capacidades de não sermos apagadas e aniquiladas; eles destroem a nossa capacidade de não nos sabotarmos para salvar suas peles; eles destroem a nossa capacidade de existir e de viver dignamente sem medo e ansiedade. Em outras palavras mais sucintas, sem reducionismos: eles destroem a nossa humanidade. 

Ontem eu assisti ao documentário a Ira de Um Anjo, porque achava que poderia estar melhor para ver. Elizabeth Tomas foi uma menina abusada com 1 ano de idade pelo pai biológico, e conforme foi crescendo, desenvolveu um transtorno mental como a sociopatia, e não expressava amor, empatia, emoção e constrangimento. Machucava o irmão mais novo e também tinha comportamentos abusivos com ele. Possuía raiva, muita raiva. Uma raiva, às vezes, estranha e muito pura. Descomunal e também naturalmente falada por ela. Não era uma raiva maldosa, com malícia. Era uma raiva sensata, porque o amor e a capacidade dela de amar e ser "humanamente" normal e respeitada havia sido violada quando ela foi estuprada. No momento em que houve a introjeção e ela sangrou, nada mais fazia sentido a não ser o acúmulo e o excesso de medo e raiva. A raiva era o mecanismo psicológico que ela utilizava para desmontar a sua frustração e seu medo. Ela citou tantas vezes que tinha medo. Os pais adotivos levaram ela no psiquiatra, e disseram que a filha matava animais, machucava o irmão e também havia sumido com as facas maiores da cozinha. Beth se masturbava todos os dias até sangrar. Ela não sabia que aquilo se chamava masturbação, mas o fazia.  Fazia porque quando ela foi abusada e teve o corpo do pai biológico introjetado no seu com 1 ano de idade, ela falou ao psiquiatra que havia doído e sangrado muito. 

Quando ela batia no irmão ou expressava comportamentos abusivos, como colocar os dedos no ânus dele, ela também expressava raiva, e dizia que não conseguia parar. 

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O que mais as pessoas erram quando falam da Beth é que ela é uma criança psicopata que queria matar o irmão e os pais adotivos. Dificilmente o público que teve acesso ao documentário pensou em rebuscar a crítica e entender minimamente o que poderia estar acontecendo na cabeça dela. Como falamos, a nossa existência social não é pautada pela subjetividade e individualidade, mas sobre a materialidade. E, quando falamos em materialidade, estamos falando sobre sistemas e o ambiente em que vivemos. O que acontece? A Elizabeth não é psicopata e também nunca foi psicopata. Ela foi uma criança vítima de abuso sexual pelo pai biológico e desencadeou um transtorno antissocial na personalidade dela, como a sociopatia. A sociopatia da Beth foi resultante da violência social e estrutural da sociedade que não desmantela a cultura do estupro e nem os estupradores. A Beth foi uma criança vítima de um homem pedófilo e estuprador. A Beth e a cabeça dela tiveram o direito de sentirem repulsa, medo, raiva e ódio. Ela sofreu e psicologicamente o amor não existiu e a empatia também não. Ela recebeu isso na sua primeira infância? Não. O primeiro contato com a vida foi violenta. A doença que ela teve após a primeira infância não é sobre como uma criança pode ser potencialmente perigosa e assassina. Isso é o resultado, a consequência. A origem disto está no pai, que foi o culpado. O sistema pátrio. A origem disso está na sociedade falocentrada, que também é culpada e gera em excessivas existências de homens e culturas para perpetuar o estupro e a pedofilia como práticas normais e permissivas a casta masculina.

Quando falamos sobre transtornos psiquiátricos em mulheres e em crianças não podemos reduzir tudo às teorias de Freud e da psicanálise que também influencia pertinentemente nos diagnósticos psiquiátricos. Não podemos reduzir tudo a questões subjetivas e individuais sem levar em conta todos os aspectos sociais que se associam variavelmente a vida daquela pessoa. O homem enquanto gestor majoritário das ciências clínicas, biológicas e médica cria diversas teorias, síndromes e complexos para justificar, entrelinhas, a coexistência entre a pedofilia e a sexualidade infantil. A primeira infância é onde absorvemos nosso primeiro contato com as coisas. Uma criança quando nasce tem curiosidade por natureza instintiva: quer desvendar todos os sentidos através do tato, do faro, da audição e do paladar. Tudo começa a ganhar cor e os primeiros sentimentos de afeto e emoção começam a aparecer se for isto que elas receberem. Quando a primeira infância rompe com a seguridade e integridade de vida e passa a vivenciar violências sexuais ou precipitações no conhecimento do corpo adulto, as coisas começam a mudar e então não temos mais o pequeno sujeito descobrindo, mas já descoberto pelas questões externas que estão a sua volta. Falo isto porque O Complexo de Édipo (O Édipo Rei), de Sigmund Freud, é basicamente a teoria psicanalítica que evidencia que crianças podem sentir atração sexual pelos pais, que meninas são objeto sexual e que a mãe é o objeto sexual do menino, e que meninas sentem inveja do pênis. Em outras palavras, é uma teoria que evidencia a ideia e a postura do homem na psicanálise sobre a mente da mulher e das crianças. O que um homem sabe sobre ser mulher e ser estuprada? O que um homem sabe sobre a nossa sexualidade? O que um homem sabe sobre ter contato com o corpo adulto (ainda mais se for homem) em nossa primeira infância? O que um homem sabe sobre ser construto de um outro ser humano? Freud construiu teorias falaciosas, pedófilas e misóginas e deixou o seu legado quase indestrutível na academia de Psicologia e Psiquiatria. Com certeza O Complexo de Édipo e de Hélen são nocivos a qualquer criança e mulher porque naturalizam a visão pedófila e masculina sobre como funciona a infância e sobre como crianças designadas macho e fêmea existem "subjetivamente" a partir da visão dele. Uma visão excêntrica, com certeza. Uma redução da existência humana a questões "subjetivas" do homem, e não da pessoa, e não da criança e nem da mulher. As teorias do Complexo de Édipo não é sobre como nossa mente, nossa sexualidade e nossos sentimentos funcionam. É uma introjeção masculina sobre as nossas vidas, uma visão distorcida e mentirosa sobre as relações na primeira infância. Uma teoria perversa e muitíssimo patriarcal, que ainda tem força nas áreas da psiquiatria e psicologia. 
                                    

 A nossa mente, as nossas emoções, dificuldades e limites psicológicos estão historicamente sendo avaliado pela sociedade falocentrada clínica, que utiliza de teorias médicas e falaciosamente biológicas para retificarem e confirmarem a sua versão de realidade. Os europeus em 1880 abrindo crânios africanos para "comprovarem" que sua teoria de que nossos cérebros eram menores estavam corretas. Os nazistas na Alemanha fazendo experiências médicas em judeus. E por aí se estende. Então essa lógica histórica do homem branco tentar comprovar as suas teorias médicas e biológicas através de experimentos e poder não é nova e não nos surpreende que nos tempos não tão distantes a psiquiatria ainda reconhecia a homossexualidade e o lesbianismo como doença psiquiátrica, e ultrajava o tratamento. Não é novidade que toda a mulher que falava sobre as violências que sofriam eram vistas como histéricas. Porque o histerismo sempre foi a forma mais convincente de aniquilar a nossa capacidade cognitiva de se manifestar e de ter consciência. Não somos histéricas e não sofremos de Complexo de Édipo porque ele não existe, só na cabeça do homem branco que acha que corpos femininos quando nascem se decepcionam por não terem pênis (Freud, 1931). 
Voltando ao caso da Elizabeth, se você for procurar sobre ela, vai aparecer em muitos lugares que ela foi uma criança psicopata que queria matar os pais. Na notícia é muito importante que as coisas sejam ditas com transparência, para que os pensamentos não se confundam e para que a sociedade tenha possibilidade de investigar a informação que recebe. Quando me deparei com esta imagem aqui: 




Eu li essa edição na página de um portal de notícias bem conhecido. Eu não estava procurando a abordagem do caso da Elizabeth pelos meios de comunicação, mas apenas queria também complementar o meu pouco conhecimento sobre quem ela era. Acontece que o enunciado da notícia começa mal. Começa muito mal. Prioriza um acontecimento que é decorrente, e não está de acordo com a ordem cronológica - de tempo - dos fatos que sucederam e desencadearam a sociopatia no comportamento e no aspecto psicológico. A primeira coisa que deveria ter sido enunciada é que Elizabeth Tomas foi abusada sexualmente pelo pai com 1 ano de idade e que desenvolveu uma doença mental que impossibilitava que ela tivesse sentimentos afetivos. A ideia deveria mostrar o "antes" e o "depois" e não o "depois" e o "antes", porque são tempos diferentes e muitas vezes passa despercebido, e as pessoas acabam focando muito mais no fato de ser uma criança propensa a matar os pais do que uma criança vítima de abuso sexual com um ano de idade. O foco que a propaganda nas notícias expressam é a principal via de formação de pensamento instantâneo: aquele que apresenta informações desconexas com a realidade, informações manipuladas e mal redigidas, que passam uma ideia diferente da que deveria estar sendo comunicada. 

A mídia, em geral, sempre foca na vítima e não no violentador. Se uma menina sofre estupro coletivo, ninguém foca na quantidade de homens que a violentaram, na sociedade que a violentou, mas apenas nela. As perguntas são: "O que ela estava fazendo lá a esta hora? Que roupa seria aquela? Ela bem que deu mole! Ela devia estar aprontando para ter recebido algo assim. Estava em um baile? Então está aí a resposta." Normalmente esse é o discurso que vemos na sociedade porque essa esse é o enfoque dos meios de comunicação. E nada desse exemplo difere do caso da Elizabeth. Ela é corriqueiramente lembrada como vítima de abuso sexual pelo pai biológico, mas jamais é livre de ser indiretamente apagada para dar sustância a outros enfoques superficiais como "é uma criança assassina", "ela não tem coração", "insensível", "doente!". Todas somos reféns dessa mesma corrida contra quem existe mais e quem existe menos. Quem tem mais valor? Quem tem menos valor? 

A sociedade falocentrada é uma sociedade permissiva com atos de violência oriundos de todos os homens para com as mulheres. A sociedade falocentrada não é somente capitalista, mas também está incrustada em todos os sistemas de dominação do macho pela fêmea. A sociedade falocentrada é a sociedade do estupro. Sem nenhum tipo de adjacente: é a sociedade do estupro. Seja a sociedade civilizada ou bárbara: é a sociedade do estupro. O estupro é o poder mais forte e que os torna mais hábeis para se locomover socialmente e em grupo. O estupro é arma mais letal que eles tem contra nós. O estupro é sobre a heterossexualidade. O estupro é sobre o homem que submete a todas as mulheres e crianças uma vida indigna e introjetada sexualmente de forma violenta. Não existimos com verdade dentro do mundo falocentrado. Não respiramos sem que eles nos sufoquem todos os dias.

A Elizabeth, eu, e todas as vítimas de abuso sexual infantil não vão ter a sua vida apagada e reduzida a um simples transtorno. A nossa função é investigar de onde resulta tanta dor, raiva e tristeza. Como é que se criaram espaços tão sombrios em partes tão abundantes do ser. Não temos que reduzir a existência de quem sobrevive aos abusos sexuais a uma simples dor ou trauma. Há uma sociedade por trás disso, há um homem por trás de cada menina e sobre cada menina. Há culpados e eles não serão um minuto sequer perdoados por nós. Não devem ser perdoados por nós. Perdão não existe. Desculpa também não existe. O que existe é a nossa sobrevivência e todos os seus espaços de eclosão. O que existe é o fortalecimento de todas essas entranhas abertas e violentadas. Finalizo o texto com um trecho de Eu quero uma trégua de 24h sem estupro, de Dworkin: 

Este é o modo pelo qual o poder masculino se manifesta na vida real. Isto é o que a teoria sobre a supremacia masculina significa. Significa que vocês podem estuprar. Significa que vocês podem bater. Significa que vocês podem machucar. Significa que vocês podem comprar e vender mulheres. Significa que há uma classe de pessoas para providenciar para vocês o que vocês precisam. Vocês continuam mais ricos que elas, para que então elas possam te vender sexo. Não apenas nas ruas e nos cantos, mas no trabalho. Este é outro direito que vocês presumem ter: acesso sexual a qualquer mulher em sua volta, quando vocês quiserem.
Um dia de cada vez. 





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