08 de março e nós

Somos mulheres.

Acordamos todos os dias e nos deparamos com todos os tipos de armadilhas, violências, ilusões e ressignificações acerca de nossas personalidades, de nossas subjetividades, de nossas capacidades, de nossas condições de saúde. Qualquer coisa que somos é resultado de várias absorções do modo que  a sociedade patriarcal projeta sobre nós. Somos, em si, robôs de gerações na visão deles, que, sem autonomia e sem direito a si mesma, merecem servir desumanamente suas tribos, suas civilizações e seus sistemas variados. 

O dia 08 de março não é sobre presentes, rosas, flores e nem felicidades. Como muitas feministas escrevem: oito de março é luta. Nada mais. É a luta constante para que, enquanto mulheres negras, indígenas, africanas, asiáticas, trabalhadoras, pobres, as prostituídas, as violentadas dentro de casa, as estupradas, as subjugadas, as lésbicas que sofrem violência, as violências domésticas, enfim, é a luta constante para que todas essas mulheres em suas diferentes realidades possam se levantar contra aquele que possui o poder de aniquilar e estuprar gerações de nós. É a luta constante para que não nos sujeitemos mais aos homens e ao patriarcado que cria lei para nos privar de decidir sobre o nosso corpo, que cria leis para defender pedófilos e estupradores, que cria leis para facilitar a vida de quem assassina mulheres. Não está sendo fácil e nunca foi fácil para nós. Vai, tenha certeza, cara leitora, muito além dos anúncios rosas e falaciosos que as secretarias da cultura promovem em todo os Estados do Brasil, com campanhas fajutas e propositais contra a violência doméstica e sexual que mulheres e crianças sofrem diariamente. Não temos erradicado o número de mortes e o número de estupro em nosso país. Não erradicamos o número de prostituição nas esquinas do Rio de Janeiro, São Paulo, grandes capitais e Nordeste, onde meninas de 12 anos casam com homens mais velhos, onde meninas de 8 anos estão passando batom para vender o seu corpo ao pátrio comércio de exploração que irá pagá-la, que irá destruir o que deveria mais importar em sua vida, mas nossa sociedade diz que não é tão importante assim: a sua humanidade. Isto porque nós somos educadas a aceitar passivamente o estupro daqueles que no dia 08 de março publicam em redes sociais apoio à luta das mulheres, que criam campanhas na semana do dia 08 sobre combate à violência, que convivem com nós dentro de casa e nos meios de militância. Somos educadas a aceitar estupros corretivos ao longo da vida, e muitas de nós morrem sem saber quem são, quem foram e onde nós estivemos por tantos anos: porque são muitas as formas de apagar as vidas das mulheres. São muitas as formas de silenciamento, às vezes absoluto, de muitas de nós. Somos e sempre fomos tratadas com total repúdio e desumanidade pelos homens. Gerações de mulheres sangram e morrem na África,  porque os homens criaram as tradições e delas todas devem obedecer. Quando ousamos discutir esta questão de muitas nós, mulheres negras, em espaços feministas, somos taxadas de reducionistas, simplistas e protagonizadoras de uma luta que não nos cabe. A circuncisão feminina na África acontece porque homens, o pátrio religioso e tradicional das tribos, impuseram para todas as gerações de mulheres que o órgão genital feminino deve ser castrado e acessado somente pelo pênis daquele que irá escolher a menina de 6 a 9 anos para casar e introduzir sob a costura feita no canal vaginal. Estão nos estuprando, nos mutilando há milhares de anos e silenciam as lágrimas e os prantos das crianças e mulheres porque aquilo faz parte da "cultura", da "tradição" das tribos (a mesma coisa homens brancos dizem nas civilizações). O que eles estão falando e nos fazendo aceitar é a cultura deles. E essa cultura é a cultura de estupro que gera milhares de mortes por ano. É a cultura de estupro que reforça que os homens tudo podem fazer com os corpos das mulheres. As mulheres indígenas embera-chami, na Colômbia, sofrem com a mesma mutilação, com a mesma dor e com a mesma morte a cada ano. Suas meninas morrem e sangram para sustentar gerações inescrupulosas e hediondas de homens, criadores de "tudo" e permissivos a destruir a nossa própria criação de luta e rebeldia contra as violências por eles gerada. Somos, para além de todas as coisas, o aparelho reprodutivo submisso à prole que obedecerá não as mães, mas aos progenitores, ao pátrio cultural da sociedade. 


O OITO DE MARÇO não é, nem de longe, um dia para felicitações. Para nós, mulheres, é um dia de repensar a nossa trajetória, a nossa luta, sem fantasias e sem ilusões patriarcais. Flores não salvam vidas e não nos salvam do estupro e nem da violência doméstica. Flores são bonitas, mas somos e gostamos de coisas que perpassam as características de pureza e delicadeza que implica uma flor. Somos o machado, somos a raiz das árvores milenares que atravessaram os tempos e os ópios sociais em toda a sua dimensão. Somos raízes conectadas por todo o fundamento da criação da terra negra. É um dia para nos conectarmos enquanto casta, enquanto fêmeas, fêmeas humanas que são donas de si e não irão permitir sofrer com a introjeção de nenhum pênis em nenhuma circunstância de nossas vidas ditando o que somos, quem nos tornaremos. Não queremos felicitações. Homens não devem fazer parte de nossa motivação para lutar. Não podemos acreditar que a nossa luta precisa agradar aos estupradores da sociedade. Não precisamos deles para fazer a nossa revolução, porque ela não depende deles e nem da bondade deles, mas sim da nossa perseverança e crença em nossa própria sobrevivência e superação. 



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