Carta aberta ao relacionamento abusivo que ainda vivo #projetohisteria

Quando li a respeito do Projeto Histeria, ministrado pela Natacha Orestes e outras mulheres, senti um largo interesse dominar as minhas vontades. Quis imediatamente que meu blog também fizesse parte de uma plataforma colaborativa e social para ajudar sobreviventes de abuso sexual a serem virtualmente confortadas. Mais adiante penso em rebuscar melhor esse projeto a fim de também atuar em parceria com o #projetohisteria.

Resolvi falar também, substituindo o nome por letras variadas. 


Dentro de mim todos os nervos estão atacando um ao outro. Como se houvesse uma guerra. Um vazio tão grande coberto de soluço, medo e aflição. Eu não sei se amei Z. Porque dói e fazia doer velhas feridas abertas na minha infância. Eu busquei reconhecer em nosso namoro todas as tuas qualidades sobrepondo, assim, todos os teus erros acima e sob qualquer custo. Dói continuar um ciclo repetitivo onde nada evolui, e onde nada se transforma. Dói na mesma magnitude compreender que nem um homem será, um dia, capaz de evoluir. Eu não posso aceitar culpas. Eu não posso me abater por essas culpas porque a minha vida já é uma culpa para mim - a maior e mais sofrida culpa. Eu sofro tanto e dilacero cada parte do meu coração em pequenos pedaços doídos. Eu sinto muita tristeza, Z. Eu queria que tivéssemos dado certo: que existisse amor e que esse amor fosse tão amistoso a ponto de poder superar as nossas dificuldades. A doença que rege quase tudo em minha vida me feriu e ainda me fere com todas estas marcas que ficou. Z. Quero gritar: estourar nossos tímpanos para ver se nos escutamos. Quero parar de sentir dor descomunal. Quero me cortar. Desistir. Eu quero desistir. Eu quero ir embora. Eu quero parar de bombear esse sofrimento que rege meu corpo. Eu não posso admitir a minha dúvida. Pergunta. Onde errei, onde errei. Pensei que houvesse falhado, ruído, abaixado as forças e rendido a minha luta. Pensei por um momento que amei com todas as minhas forças e fraquezas, me dispus a pisar em mim mesma na tentativa de me fazer por ti amada. Quis acreditar nos castelos e nas músicas quando te vi passar fiquei paralisado/tremia até o chão como um terremoto no Japão/ um vento/um tufão/uma batedeira sem botão/foi assim, viu?/me vi na tua mão. E parei, então, de acreditar em mim mesma. Deixei-me apagar aos poucos enquanto corriam as lágrimas. Tantas vezes eu quis fugir, tantas vezes quis gritar, mas a única coisa que realmente consegui foi calar a minha fobia, enterrar o meu desespero em mim mesma. Eu queria proteger as tuas dores e também queria entender a multiplicidade variável dos teus humores destrutivos. A violência com a qual eu tinha que lidar mostrava a desigualdade entre nós: eu passional lidando com a besta feroz. Eu era apenas algo em alguma coisa, enquanto cabia ao meu cérebro te enfeitar como o Meu Salvador. De repente me vi doente, abatida, jogada às traças que me comiam pelos cantos do meu quarto. Por onde quer que eu andasse no antigo apartamento da República eu lembrava de ti. Era, de todas as formas, um jeito tortuoso de se viver. Quando eu experimentava a distância, os auto-retratos que eu havia pintado ganhavam vida e falavam comigo: era, na verdade, o Z que eu sonhava, não o Z real. O Z que eu pintava era colorido, possuía os olhos traçados com simplicidade. A realidade, no fundo, não era tão branda. O Z tinha pouca ou quase nenhuma cor, e o olhar, às vezes castanho, às vezes esverdeado, desmontava-se num vazio distante e muito duvidoso. Eu sentia meu coração frio e quase um pedinte. Meu coração não suportava a ideia de viver sem Z. A Clarice Lispector falou sobre isto em um de seus livros que contava a história de uma menina cujo nome eu esqueci que amava um sujeito estúpido e carrasco, e quanto mais carrasco e estúpido fosse, mais enamorada estaria a menina por ele; seria este o cerne do amor entre aquelas duas personagens inventadas pela Clarice Lispector. Mas nenhuma mulher ou menina em sã consciência sobre si mesma gosta de sofrer e de amar o sofrimento. Não há como estabelecer este tipo de vínculo sem adoecer-se. Alguém numa relação como esta acaba se perdendo. Eu vivencio essa relação com o Z onde eu aprendi a amar exasperadamente o sofrimento; e entendi, às duras penas, que nunca mereci nada além disto. Quando o Z resolvia ser amistoso comigo, eu passava a desenfrear a minha crença e a via disparar mil anos a minha frente fazendo planos para o futuro. Quando o Z era bom comigo, eu sonhava imediatamente no arquétipo do homem gentil o qual toda mulher amada tinha consigo, e me sentia sortuda por ter alguém como ele. Passei a me enlouquecer com ciúmes e posse. Eu era uma menina feroz lutando por um ideário onde o meu suposto amor seria a minha suposta vitória. Eu, mais que ninguém, velejei sozinha por todos esses anos no meu relacionamento com Z. Era como namorar um mistério tempestuoso. Uma doença cíclica de dependência e pavor de solidão. Para que eu suprisse algumas dúvidas brutais, eu tinha que perguntar e arranjar meios maleáveis para elaborar as perguntas. Dependendo da resposta eu sentia confiança e seguridade no que tínhamos. Se a resposta resultasse em improbabilidade, eu desatava em lágrimas e ficava agressiva. Nessas alturas o meu transtorno de personalidade estava implodindo em toda a materialidade da minha vida. Eu mesma vi nascer em mim uma continuação quase imbatível da autodestruição. Todas as vezes que tentei me separar do Z, logo era acertada pela flecha da culpa e da redenção. Tinha também a presença inconstante e fantasmagórica dele no meu espaço, na minha residência. Cedia aquele olhar vazio que me fitava com desprezo e então suplicava que não desistisse do nosso amor. Todas as vezes ele sempre disse que nunca desistiria. Uma das características dele é a punição. Toda culpa que eu carregava era, posteriormente, revertida em punição para somente mais tarde ser absolvida por ele. Era o juiz da minha vida emocional e comportamental, limitando, assim, a minha vontade de existir naquela relação de asfixia. É verdade, sim, que ele se comportava como um pai. Minha terapeuta ousou dizer que isso me fez enamorar por ele: a conduta do homem mais velho como um pai. Chorei porque não acreditei. Eu achava que era apenas parte de um defeito consertável esse tipo de comportamento. Eu sempre rejeitei meu pai no mais profundo sentimento do meu âmago. Rejeitei esse comportamento de K porque me incomodava, me tirava a voz e a autonomia de locomoção. Era um labirinto. Às vezes sinto que fui muito mais um saco de pancadas na visão de K do que qualquer outra coisa. Não tinha explicação que justificasse uma pessoa se aproveitar de um terreno tão mortal e frágil de outra. Às vezes eu sentia que K buscava se vingar de mim porque as ex-namoradas não permitiram que seguissem num relacionamento de dominação violenta. Elas romperam com ele porque seria insuportável a ideia de viver com alguém controlador, agressivo, estúpido, violento e grosso. Não apenas seria insuportável: é insuportável. Quando comecei a gritar e esbravejar, ousar os limites da minha sanidade, conforme já premeditava o T.P.B, o K se assustou. De repente a adolescente passiva e autopunitiva passou a gritar, descabelar e jogar as suas coisas no chão. Eu tinha 14 anos enfrentando K, com 26 anos. Eu vociferava aos quatro ventos o que tu quer comigo/nada que eu faço é suficiente/me responde/me responde, até que ele apostou no silêncio e resolveu me desafiar. Quando eu já não suportava as brigas e os machucados, passei a viver pelas beiradas do relacionamento. Aos poucos toda a Ira, Raiva e Revolta foram se esvaziando do Grande Centro de Tensão. Quando adoeci do HPV (papilomas vírus humano) percebi que o céu escureceu e a terra tremeu rapidamente sob os meus pés. Derrubei minha cabeça na janela do ônibus e silenciei. Todo e qualquer ruído eu não reconhecia. Se falassem comigo, eu não ouviria. Eu respirava o silêncio e não poderia responder nada senão ele mesmo. Esperei chegar no Apartamento 25 para deitar que nem um feto e esperar o dia acabar para poder nascer novamente na manhã seguinte. Acontece que na manhã seguinte não nasci. Carregava o meu corpo pesado e doente de um lado para o outro na escola. Chorava tanto na sala de aula que eu passava quase todo o tempo ouvindo conselhos do orientador pedagógico. Quando eu podia voltar pra casa, eu continuava em um estado total e absoluto de silêncio. Eu não conseguia pronunciar nenhuma palavra. Estava cansada, apenas isso. Era a minha história, minha infância, e de repente esse relacionamento maluco de tão absurdo. Só me causava sofrimento e eu sofria sozinha. Aquele dia eu havia morrido e ressurgido dentro de um novo corpo que daria suporte ao tratamento com ácido que me aguardava na cadeira cirúrgica da Doutora A. Todas as vezes que eu precisava falar qualquer coisa com o K, eu sentia raiva. Raiva, Ira e Decepção Absoluta. Morria em mim mesma todas as vezes que ia tomar banho. Quando lavava a minha vagina sentia ao redor dos lábios da vulva as lesões doerem. Eu chorava no banho e tentava ser cuidadosa para não machucar. Mais uma vez eu estava renascendo. 2015 eu tomei uma cartela de remédios (Buscopan e Paracetamol - 200mg, 30 capsulas de cada), e, na esperança e no desespero da partida sentida, fui agredida por K. Não anotava movimentos, minha visão estava turva e meu sistema nervoso a cem por hora. De repente só lembro de sentir um peso tão profundo e constante no meu rosto. Ele me deu um tremendo tapa na cara. Eu caí no chão, visto tamanha a força. Eu quis chamar a minha Mãe e não pude. Tu, K, sabe porque não pude. Tuas unhas engalfinharam os meus pulsos e tuas mãos apertaram os meus braços e as minhas mãos, colocando sobre a minha boca na tentativa de afobar meus gritos e retirando o celular que eu usaria para ligar pra minha Mãe. Eu fui pro hospital naquela noite e me perguntaram o que era aquela "coisa" vermelha na minha bochecha. Eu falei silêncio. Chorei silêncio. Cuspi e urinei silêncio. Caíam lágrimas dos meus olhos enquanto o mal-estar do soro, da lavagem e dos outros remédios faziam efeito. Não consigo esquecer dos três dias em que acordei com a tua mão no meu rosto. Eu fugia do espelho para não lembrar daquela noite infernal, deixa eu ligar para a minha mãe/eu vou chamar a polícia/eu fico quieta/socorro. 
 K, sei que tu diz que eu não esqueço essa história. Eu não esqueço. É a minha história. Escrita, inclusive, por ti. Não é alguma coisa que li em livros ou em jornais e que mais tarde não vou lembrar. Também não é nada que se possa descartar voluntariamente e fingir um sorriso. É a minha história, meu corpo e minha mente: mesmo que eu quisesse, e muitas vezes desejei querer, eu nunca poderei esquecer. Eu não quero me vingar e não quero revanche. Não vou te crucificar e nem me vingar de ti toda vez que eu lembrar disso tudo que aconteceu. Isso não é vingança, é a minha história. Não tenho culpa se ela dói e se ela me fere. Se tu me fere. Pode ser que uma parte minha tenha tido a destreza de não rejeitar a docilidade e a passividade. Isso não é bom. Mas eu não posso dizer que estarei curada. Ou que estou curada. Ou que um dia isso irá acontecer. As feridas abertas não tem prazo para cicatrizar. Estará para sempre comigo. Se tu pôde se dar ao luxo de apagar o que fez, para mim resta apenas a sensação terrível e amarga de que tu é um ser humano pouco, quase nada. Desprovido de remorso e amor. Eu não pude me permitir esquecer porque não tenho controle sobre aquilo que lembro. Quisera eu esquecer o que a mim fizeste. Quisera eu romper as linhas com o passado para poder dar luz à minha superação. Querendo ou não, eu sempre estou me justificando na tentativa de fazer valer o meu sofrimento, já que a minha história é mais que a metade da vida sobre SILÊNCIO e ASFIXIA. Hoje, aos 17 anos de idade posso dizer que fui vítima de abuso sexual intrafamiliar na primeira infância. Hoje, ao dezessete anos, diagnosticada com D.P e T.D.B, posso dizer que estou sendo medicada e fazendo terapia com H, minha psicóloga infanto-juvenil, que me resgatou tantas vezes do "fundo do lixo", como descreveu minha mãe. Não tenho medo e vergonha de dizer, K, que de alguma forma busquei em ti o Amor alusivo ao que penso ser hoje muito diferente de quando te conheci, e de quando adotei o ideário esmagador da sociedade falocentrada. Não busquei em ti o amor paterno, e nem mesmo os cuidados de um pai. Busquei em ti um namorado "ideal", que combinasse comigo, que eu amasse profundamente e pudesse planejar ter filhos e morar numa casa simples e com rede. Mesmo que só agora eu sinta que nunca quis ter filhos e que nunca acreditei em eternidade. Pintei com as tintas de verde e azul o nosso imaginário de amor: sonhei que quando estivesse velha e esquecida, iria lembrar de ti, e iria contar aos nossos netos que nos conhecemos em um Largo e que comemos crepe. Tracei mil e umas formas para poder fugir do relacionamento que viria a destruir os meus jardins emocionais e a corromper o teu caráter. Me entristeci, permiti cerrar-me em mim mesma até deixar de existir do teu lado. Foi difícil e é difícil. Quis te cuidar e te aceitar com as tuas dificuldades: batia no peito na tentativa de intimidar quem quer que ousasse desmerecer a tua personalidade. Às vezes, assombrada pelo teu gênio, eu aprendia a valorizar quem tu havia se tornado. Era para mim aquele que eu me dispus a proteger, pois na minha cabeça amor/amar é para raros. Tudo foi ruindo, declinando, morrendo e matando tudo que vivesse ao seu redor. Meus olhos passaram a refletir os teus, e o olhar concomitante da adolescência reverteu-se nos teus olhos vazios e apagados, que agora também eram meus. Passei a engavetar minhas roupas coloridas, e de repente passava a me identificar com pouca ou nenhuma cor. Tornei-me um resultado desastroso e forte da nossa equação. Surgiu em mim a nova capa protetora que me permitiria pensar em novas possibilidades de viver com a tua ausência. 
Hoje sou, sobretudo, uma sobrevivente.  













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